A arbitragem e o Mundial do Catar

OPINIÃO24.05.202206:30

Uma ida a uma grande competição não é um caminho que um árbitro possa fazer sozinho

M UITOS afirmam que a ausência de árbitros portugueses no Catar deve-se à sua falta de competência. Respeito a opinião que me parece redutora, porque talvez assente na perceção que têm das arbitragens que envolvem Benfica, FC Porto e Sporting. A verdade é que ninguém acompanha de perto o desempenho dos nossos internacionais nos cerca de 40 jogos que dirigem por época. Só assim poderiam formar opinião avalizada sobre a globalidade das suas prestações e a sua consistência técnica. Penso que este rótulo fácil advém da proximidade emocional ao clube do coração e, porventura, da memória de momentos muito tristes de um passado distante que, a cada penálti mais discutível ou fora de jogo milimétrico, ensombra o presente. Sem prejuízo dessa forma de pensar, gostava que pelo menos considerassem outras circunstâncias factuais.
Uma delas é que este tipo de escolhas não recai apenas no mérito dos que são selecionados. Há outros critérios em cima da mesa (estratégicos, sociais e até políticos) que pesam significativamente nos nomes que são indicados. O exemplo mais visível é o que resulta daquilo a que chamo de sistema de nomeações por quotas, algo que estabelece uma espécie de limite de árbitros a designar por continente. Para que tenham uma ideia, para a Europa esse valor fixou-se nos onze.
Não deixa de ser questionável. É no velho continente que atuam muitos dos melhores juízes e disso ninguém terá duvidas. Agora ficaram de fora 22, todos de elite, entre os quais vários consagrados, com presenças em grandes competições e finais internacionais. Repito, isto é factual. Se tiverem curiosidade, passem os olhos pela lista dos eleitos. Perceberão em poucos segundos que muitos dos contemplados são menos qualificados e experientes do que alguns europeus excluídos (com todo o respeito pelos representantes do Ruanda, Nova Zelândia, Argélia, Zâmbia e afins). Mérito sim, mas em versão aldeia global. É como é e é assim desde sempre.
Enquadramento feito, falemos do mais importante, que é a mensagem que esta decisão traduziu: a de uma derrota clara para a arbitragem (e para o futebol) português. Não tenhamos dúvidas. Perdemos não para todos mas para onze e convém perceber porquê. Se não interpretarmos esta travessia como um revés, corremos o risco sério de nos conformarmos e de nos vitimizarmos. Seria mau, porque prejudicaria a exigência que deve nortear a nossa classe. Nós não queremos nem podemos ser os primeiros dos últimos. Não queremos nem devemos aceitar o destino, desculpando-nos com variáveis que não dominamos.
Temos de sonhar alto e ambicionar ainda mais alto. Temos de querer estar sempre onde estão os melhores. Temos de querer ser os melhores. Sempre! Mas querer não chega: é preciso antecipar, planear e executar. É preciso preparar, criar estratégia e leva-la até ao fim.
Uma ida a uma grande competição não é um caminho que um árbitro possa fazer sozinho. Tem de ser percorrido por ele e pela sua estrutura, que lhe deve garantir todas as condições para que possa trabalhar como um profissional. Um árbitro (ou árbitro assistente ou um VAR) que queira estar numa prova desta dimensão precisa de somar ao valor que tem aquele que tem que adquirir com treinos, acompanhamento constante e motivação adicional. E para chegarmos onde os outros já chegaram, não basta entrega em campo. É fundamental que sejamos tão políticos quanto os políticos que fazem estas escolhas. É preciso entrar também no jogo que se joga do lado de fora, disputando-o lealmente, com integridade e objetivos bem definidos.
Se não deu agora, ninguém morre. Por incrível que pareça, já tivemos (árbitros) mais presenças em mundiais do que a nossa Seleção. Não é tudo mau. Que venha 2026.