Uma professora e uma gestora de condomínios entram num Europeu…
Seleção feminina de andebol apurou-se para o Europeu, 16 anos depois da última e única presença (FPA)

Uma professora e uma gestora de condomínios entram num Europeu…

ANDEBOL11.04.202409:30

Ao fim de 16 anos, a Seleção feminina de andebol voltou a conseguir apurar-se para o Euro; Mas a que custo? Quantas jogadoras se perderam pelo caminho? E porquê?; É momento de festejar, mas também de refletir

Desta vez, o regresso à escola foi diferente. O sorriso rasgado da professora Bebiana contrastava claramente com a frustração que habitualmente a acompanhava quase sempre nesta altura do ano.

«Fui muito bem recebida, claro. Recebi um ‘bom dia’ seguido dos parabéns dos meus alunos e também de colegas. Nem toda a gente está muito a par e claro que o reconhecimento nunca é tanto como acontece no futebol, mas foi bom», descreve, em conversa com A BOLA no intervalo entre duas aulas.

«Nem toda a gente está a par».

É verdade: nem todos sabem que a professora Bebiana é também a capitã da Seleção feminina de andebol, Bebiana Sabino.

Ou seja, foi a professora que na terça-feira regressou sorridente ao habitual local de trabalho. Mas o sorriso era ainda o da jogadora que dois dias antes contribuíra para o regresso de Portugal a um Europeu, 16 anos depois da última presença.

Dezasseis anos. Quase tantos como a pivô de 37 leva de carreira como docente. E ao longo de todos eles, nunca deixou de perseguir o objetivo que em 2008 Portugal conseguiu com o contributo dela na pré-qualificação. Naquela altura, a Bebiana de 21 anos não podia imaginar que o regresso da Seleção a uma fase final de grande competição iria demorar tanto tempo. Não tinha como saber. Por isso, continuou a lutar.

Bebiana Sabino (primeira jogadora em pé, à esquerda) participou na pré-qualificação para o Europeu de 2008, mas não foi à fase final (FPA))

Lutou tanto por algo que só chegou no domingo passado, ao fim de mais de 130 jogos dela de quinas ao peito. Uma epopeia com tormentas que lhe foram dando cabo das emoções.

«Foi uma travessia muito dura. Ainda no dia da viagem de regresso comentava: no final de cada apuramento, era horrível aquela sensação do ‘ainda não foi desta’. Era uma frustração que se ia acumulando», descreve.

«No início desta conversa perguntou-me como tinha sido o regresso ao trabalho. E lembrei-me logo de como foi nos anos anteriores. Este dia seria só mais um de retomar a vida com a frustração de não ter conseguido alcançar um objetivo que tinha. Isso desgasta muito do ponto de vista emocional e psicológico. Foi um processo muito doloroso para mim e para todas as atletas que pensavam que sempre: ‘desta é que vai ser!’», reforça.

Algo muito distinto, portanto, daquilo que viveu na terça-feira. «É uma sensação indescritível. É algo que nunca tinha conseguido antes, por isso nem sei bem o que é estar aqui sem lamentar-me; sem ir para a cama frustrada por não ter conseguido; sem pensar ‘ainda não foi desta’. Mas é uma ótima sensação», descreve, confidenciando que foi uma Bebiana diferente aquela que entrou na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Beja (IPB).

«Eu até costumo ser uma pessoa séria por feitio, sou alguém de extravasar pouco as minhas emoções. Mas hoje foi difícil de controlar o sorriso. Porque é uma alegria e uma felicidade indescritíveis», acrescenta.

Bebiana Sabino após marcar um golo pela Seleção (FPA)

900 km por semana… para jogar

Bebiana Sabino é a única resistente de 2008 entre as atletas que participaram na qualificação para o Europeu que entre 28 de novembro e 15 de dezembro vai decorrer na Áustria, Hungria e Suíça. E «resistente» aqui, como já deu para perceber, não é eufemismo. Mas basta saber aquilo que ela faz semanalmente para perceber que lhe está no sangue. É mesmo amor ao andebol.

Para aqueles que acompanham mais de perto a modalidade, talvez tenham soado alguns alarmes quando antes escrevemos ‘Instituto Politécnico de Beja’. É que Bebiana Sabino é um nome histórico do Colégio de… Gaia.

Há onze anos que a portuense regressou ao clube no qual concluiu a formação e iniciou o percurso sénior. E há cinco que tem em Beja o local de trabalho. Feitas as contas, são cerca de 450 os quilómetros que separam Beja de Gaia. 900 quilómetros que Bebiana percorre entre sexta-feira e domingo para representar o clube gaiense.

Bebiana Sabino (FPA)

«É verdade, são uns quilómetros de distância!», reage sorridente, explicando a escolha, relacionada também com incerteza habitualmente associada à profissão de professora, a cada concurso de colocação.

«Foi uma opção de vida que tomei a de ficar só no Ensino Superior. Dá-me estabilidade saber que apesar da distância, vou estar aqui no ano letivo seguinte. Se estivesse no ensino básico ou secundário, podia estar mais perto, mas também podia ser colocada mais longe. E depois há sempre a incerteza de onde se vai ficar, onde poderia treinar, onde isto, onde aquilo… todos os anos», explica.

Sim, onde treinar. A 450 quilómetros de Gaia, Bebiana teve de encontrar uma solução para não passar a semana sem treinar. E a única opção viável é fazê-lo num clube alentejano… com homens. «Comecei por treinar no Zona Azul, mas nos últimos anos passei a treinar com o Serpa, uma equipa que compete na 2.ª divisão [terceiro escalão]», revela.

Essa está longe de ser uma situação ideal, basta dizer que nem o tamanho da bola é igual, mas a jogadora de 37 anos opta por olhar para os aspetos positivos. «Gosto de treinar com eles porque dá-me outras competências e é sempre desafiante», introduz.

Bebiana Sabino no jogo de Portugal frente aos Países Baixos (FPA)

«Claro que é complicado porque o andebol é um desporto coletivo, e na posição em que jogo, dependo muito da relação com as minhas colegas da primeira linha. Mas também jogo numa equipa que já represento há muitos anos, com o mesmo estilo bem definido, e isso facilita. É complicado, mas gerível. O clube conhece as condicionantes e faz tudo para eu poder continuar a jogar lá», orgulha-se.

Ou seja, na melhor das hipóteses, Bebiana Sabino faz dois treinos semanais com a equipa: à quinta e sexta, se não tiver de trabalhar no último dia da semana. Mas acontece também ir a jogo sem treinar uma única vez com as companheiras, quando dá aulas de mestrado ao sábado de manhã. Nesse caso, segue diretamente para o jogo.

«Europeu? Não consigo garantir»

E se depois de estar 16 anos a perseguir um sonho, com todos os sacrifícios pessoais e profissionais que se podem imaginar de alguém que nunca foi profissional, a Seleção não pudesse contar com a capitã no Europeu? Seria, no mínimo, injusto. Mas não é impossível de vir a ser realidade lá para o fim do ano.

«Em primeiro lugar, vou trabalhar para ser uma opção para o selecionador nesse grande momento. Mas não basta ser convocada. Será preciso encontrar uma solução para a minha situação, porque será uma ausência mais prolongada, de quatro ou cinco semanas», começa por dizer, sem conseguir garantir que será fácil tornar em realidade a sua presença no Europeu.

«Vou fazer de tudo, e a federação também trabalhará nesse sentido junto do IPB para encontrar soluções porque será uma ausência maior do que a habitual. Mas, a verdade é que dependo da minha profissão para fazer a gestão da minha vida. Gosto muito da Seleção e espero que seja possível, mas é impossível garantir neste momento que não vou falhar o Europeu por motivos profissionais», lamenta.

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Apesar da evolução que se tem sentido nos últimos anos, esta ainda é a realidade do andebol feminino, cujo campeonato português tem apenas dois clubes que conseguem proporcionar o profissionalismo às suas atletas: Benfica e Madeira SAD. E na opinião de Bebiana Sabino, essa é uma razão óbvia para que Portugal tenha estado 16 anos longe dos grandes palcpos. Porque todos os anos se assistiu à perda de talento do andebol por ser impossível a uma jogadora viver dele.

«Claramente que essa perda de talento é duas razões para termos passado tanto tempo sem ir a Europeus. Conseguimos um feito histórico há 16 anos. Tínhamos três jogadoras profissionais na altura! Desde então, passaram muitas gerações que em seniores não se conseguiram manter no andebol. As jogadoras com todas as exigências profissionais, não conseguem manter a qualidade de treino que precisam. Chega a uma altura em que têm de optar, e escolhem, naturalmente, seguir uma carreira fora do andebol», analisa.

Para os festejos do apuramento, Bebiana Sabino levou a camisola de Maria Pereira, jogadora que este ano deixou a Seleção, ao fim de 92 internacionalizações

Na Seleção atual, o cenário já é distinto. E ela é uma das poucas jogadoras não profissionais. Mas grande parte teve de emigrar para o ser.

«Nos últimos seis anos começámos a ver jogadoras a ter a opção de serem profissionais. Infelizmente, em Portugal só temos dois clubes com algumas atletas profissionais. Há uns anos era impossível pensar numa carreira só no desporto. Eu, por exemplo, nunca pensei deixar a carreira para me dedicar só ao andebol. O que iria fazer depois do andebol? Hoje, felizmente, muitas jogadoras têm a coragem de fazer as malas e ir procurar seguir essa paixão lá fora», orgulha-se.

Ainda assim, apesar de ver evolução no sentido da profissionalização, é às atletas que reconhece quase todo o mérito. E isso é algo que Bebiana Sabino sente ser urgente mudar.

«A política em Portugal não permite que as atletas sejam pelo menos semi-profissionais. O valor que é dado ao desporto cá, não é o mesmo que vemos noutros países. Lá fora é uma mais-valia para as empresas terem atletas de alta competição na estrutura. E por cá, é visto como um problema porque isso pode ter implicações no tempo de dedicação aos empregos. É urgente viabilizar uma carreira desportiva que permita, pelo menos, conciliar o desporto com outras atividades profissionais», alerta.

«Passo o aniversário sozinha há 11 anos»

Soraia Lopes é a prova de tanto que foi dito por Bebiana Sabino. E desengane-se quem pense que é apenas por serem colegas de seleção. Elas vivem essa realidade há anos.

Ao contrário da companheira, a ponta de 34 anos foi profissional durante os últimos 11 anos. Foi. Já não é. E deixou de o ser porque se cansou de mais de uma década longe dos seus. É certo que o fez para perseguir uma paixão e viver um sonho. Mas tudo chega ao fim.

«Estava muito cansada de estar fora, é uma vida muito solitária e os momentos perdidos dos meus amigos e família começaram a doer demasiado. Por isso, senti que era altura de voltar», explica.

A solidão de uma carreira profissional no estrangeiro foi uma das razões que levou Soraia Lopes a regressar a Portugal, mesmo tendo de conciliar o andebol com um outro emprego (FPA)

A jogadora algarvia foi das primeiras andebolistas portuguesas a emigrar e permanecer emigrada para ser profissional de andebol. Depois de duas épocas no Madeira SAD, onde já se dedicava apenas a jogar, rumou a Espanha para procurar outras condições. No país vizinho esteve seis épocas, entre o clube galego Porriño e o La Calzada, na fronteira com o País Basco. Pelo meio, voltou um ano à Madeira e os últimos dois foram passados na Suécia, ao serviço do Boden, clube do norte da Suécia.

Mas no início da época, apesar de ter propostas para continuar no estrangeiro, a decisão de regressar estava tomada. «Tinha clubes interessados na Alemanha e em Espanha, mas não queria. Foram muitos anos. Há 11 anos que passo o meu aniversário sozinha. Queria mesmo voltar a casa, com tudo o que de bom e mau essa decisão trazia», reconhece.

Ora, uma das coisas menos positivas era a questão de deixar de ser profissional. O regresso do Gil Eanes à primeira divisão foi o empurrão que faltava na decisão de Soraia, que podia assim atender ao convite do clube que representou no final da formação e início do percurso de sénior. Mas para poder voltar, ela precisava de encontrar um emprego que lhe permitisse ter um ordenado que o clube não lhe pode assegurar.

Foi o fim assumido do profissionalismo. «Encarei isto com naturalidade. O meu trajeto foi super-gratificante. No mundo, faço parte de uma pequena percentagem de pessoas que são pagas para fazer aquilo de que gostam. Saiu-me muito do corpo, obrigou-me a perder muitas fases dos meus, mas metendo tudo na balança, foi um percurso muito positivo e que me deu bastante prazer», sublinha.

«Tenho muita sorte com os patrões»

Aos 34 anos, e depois de ter tido apenas alguns empregos no verão, além da carreira de andebolista, Soraia Lopes entrou no mercado de trabalho convencional, num emprego que lhe foi arranjado pelo clube algarvio.

«Trabalho numa empresa de gestão de condomínios. Nem sabia se seria capaz de fazer alguma coisa além de jogar andebol, mas está a correr bem. Todos os dias vou a vários prédios fazer vistoria e depois passo a informação se for necessário fazer alguns arranjos», detalha.

Além desse emprego de oito horas diárias e de treinar e jogar, a ponta esquerda da Seleção nacional tornou-se também treinadora da equipa de sub-14 do Gil Eanes. E de repente… começou a dar valor ao tempo!

«Não sei onde tinha a cabeça quando aceitei isto tudo. Devia achar que cada dia tem 48 horas em vez de 24», atira numa gargalhada.

Soraia Lopes num treino da Seleção (FPA)

«Quando somos desportistas profissionais acho que não temos noção do tempo. Há demasiado tempo livre. Por isso, no início foi super-duro. Saía de casa antes das 8, porque estava a recuperar de uma lesão e tinha de fazer fisioterapia e ginásio antes do trabalho, e voltava às 22h30. Nas primeiras semanas nem conseguia ir ver a minha mãe, que vive a 20 minutos de mim», descreve.

Por isso, se «já antes valorizava muito as jogadoras que trabalham e jogam», agora dá ainda mais valor. «O início da época foi mesmo complicado. Sentia que para descansar, não podia viver. Para viver, não conseguia descansar. Aqui todas andamos no andebol por gosto, mas por muito coração que metas num treino ou jogo, o cansaço está lá. Os meus 100 por cento são muito menores do que os 100 por cento de quem conseguiu estar a descansar», aponta.

Apesar deste confronto com uma realidade muito distinta daquela a que estava habituada, Soraia Lopes sente que continua a ser uma privilegiada, tendo em conta a realidade em Portugal.

«Eu tenho muita sorte com os meus patrões. Por exemplo, quando lhes fui perguntar se podia ir à seleção, o que implicava faltar alguns dias, eles disseram-me logo que sim», introduz, dando outros exemplos.

«No desporto, é normal haver algumas pequenas lesões e quando eu preciso, eles também me deixam sair um pouco mais cedo, se precisar de ir à fisioterapia. E quando há jogos, muitas vezes temos de sair na véspera, e eles permitem-me meter um dia de férias à sexta-feira para poder viajar com a equipa», enumera, num desabafo: «Mas eu sei que tive mesmo muita sorte, porque nem todas conseguimos ter pessoas que valorizam que os seus funcionários se dediquem ao desporto».

Por essa ser ainda a realidade em Portugal, a atleta faz questão de sublinhar que o apuramento para o Europeu é algo que se deve a todas as atletas que se sacrificam para não desistir. Mas mesmo assim, o primeiro sentimento que verbaliza para falar do feito que ajudou a alcançar não é o orgulho. E a culpa não é dela.

«A nossa qualificação é um alívio. Era algo que queríamos há tanto tempo! E continuamos a ter muitas jogadoras que não são profissionais, que trabalham muitas horas durante o dia, que pagam com esse trabalho, por exemplo, a gasolina para ir treinar. E nós conseguimos isto por nós, mas também por todas as jogadoras que estiveram na Seleção e lutaram durante anos para hoje termos esta possibilidade. Para mim é um sentimento de alívio e de dever cumprido», descreve.

Isso faz-nos voltar a Bebiana Sabino. E ao talento que se perdeu ao longo dos últimos anos devido à falta de cultura desportiva e de aposta real no desporto. Foi de todas essas jogadoras que a capitã falou quando o jogo com a Rep. Checa terminou e o apuramento foi conseguido.

«No momento dos festejos, disse à equipa que este apuramento é das 18 que lá estavam e das 21que fizeram parte da qualificação. Mas também de todas as que lutaram para conseguir que este momento fosse possível. É de todas as jogadoras que se dedicaram, que achavam que era possível, mas para quem nunca foi. Muitas delas mandaram-me mensagem a dizer ‘finalmente!’. Finalmente, vamos trabalhar para preparar o Europeu, e não para ir em busca de uma próxima oportunidade. A oportunidade chegou.»

A oportunidade chegou!

A Seleção nacional feminina vai participar no Europeu que se realiza entre novembro e dezembro (FPA)

Todas as atletas que participaram na qualificação

Isabel Góis   Madeira SAD

Jéssica Ferreira  Clermont Auvergne (França)

Matilde Rosa       Gil Eanes

Ana Ursu       Benfica

Carolina Monteiro     Colégio de Gaia

Soraia Lopes       Gil Eanes

Ana Carolina Silva     La Calzada (Espanha)

Cármen Figueiredo   Gil Eanes

Joana Resende   Clermont Auvergne (França)

Mariana Lopes    Bayer Leverkusen (Alemanha)

Carolina Loureiro       Celles-sur-Belle (França)

Maria Unjanque  Benfica

Nádia Rodrigues         Benfica

Bebiana Sabino  Colégio de Gaia

Rita Campos Benfica

Beatriz Sousa      Toulón Métropole (França)

Luciana Rebelo Esbejerg (Dinamarca)

Neide Duarte       Madeira SAD

Patrícia Rodrigues     Madeira SAD

Constança Sequeira         Benfica

Mihaela Minciuna      Benfica

Patrícia Lima       Costa del Sol (Espanha)