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ENTREVISTA A BOLA Trabalhou nas obras durante a pandemia: «Saía de casa às 7h00 e era o dia todo com o martelo na mão»

VOLEIBOL15.03.202510:00

Edson Valencia, voleibolista do Sporting, estava em Guimarães quando a pandemia fechou o Mundo. Não podia regressar a casa, não havia desporto. Aceitou trabalhar nas obras para ganhar dinheiro para sustentar a família

- A sua polivalência que trouxe da Venezuela foi muito útil num momento muito complicado que viveu durante a pandemia, não?

- As coisas não acontecem por acaso, realmente. De um momento para o outro fiquei sem nada. Nada. Não conseguia voltar ao meu país, não havia jogos e eu estava aqui com a minha família, dois filhos pequenos. Não há campeonato, não há dinheiro, não há nada… O que é que eu vou fazer?! O que é que eu vou fazer?! Não posso voltar ao meu país. Até que um amigo me telefonou e disse: ‘Edson, vão fazer obras na casa da minha irmã. Não sei se está interessado, é um trabalho duro… E eu :«Estou pronto! [risos]. O que é que vou fazer? Vamos!»

-Uma questão de sobrevivência?

- Era a única maneira, a minha esposa ficava com os meus filhos, e também não podia andar na rua. E lá fui eu. Foi um pouco duro, porque, enfim, eu sabia trabalhar nas obras, mas pouco. A experiência que tinha tido era como assistente… [sorri]. Uma vez disseram-me: ‘Amanhã é preciso construir um muro, mas terás de ficar sozinho, porque só conseguimos chegar ao final da tarde. Consegues?' E eu: «Sim, sim», sem fazer ideia. Eram uns cinco metros de comprimento por dois de altura. Passei a noite quase sem dormir, a pensar que no dia seguinte tinha de construir um muro. Mas, de manhã, lá fui e comecei a construi-lo. Quando o dia acabou, estava praticamente feito e só dizia: ‘Obrigado, vida!’. Não sabia se a minha carreira ia acabar, foi um momento de grande confusão, um momento em que não conseguia pensar. Era só sobreviver. Era o modo de sobrevivência, na verdade. Eu não conseguia pensar: ‘Tenho de jogar amanhã? É possível que em breve tenha de jogar?' Saía às sete da manhã e regressava a casa às 19h00, 20h00 e era o dia todo com o martelo na mão. Chegava a casa com dores no corpo todo. Mas quando estás numa situação destas, não paras para pensar que estás cansado, só pensas em trabalhar e receber. Nessa altura não pensava no voleibol, nem em mais nada. Só pensava voltar a trabalhar no dia seguinte e ser pago. Isso era a única coisa que me passava pela cabeça. Isso, e a minha família. Foi uma altura de grande aprendizagem, sem dúvida.

«O atletismo moldou-me»

Edson Valencia, voleibolista do Sporting, começou a praticar decatlo mas não era um atleta exemplar, apesar de gostar muito do dardo. Porém, foi o atletismo que lhe ensinou uma lição para a vida.

-  O que estava a fazer na Venezuela, antes de vir para Guimarães?

- Eu já jogava voleibol, tinha estado na Argentina, mas naquela altura não estava a jogar. Na Venezuela estamos habituados a fazer tudo e na minha família era assim. Erámos mecânicos, cozinheiros, empreiteiros. É preciso fazer, fazemos. Trabalhamos em qualquer coisa. Somos cinco, três mulheres e dois homens. Por circunstâncias várias fazemos muitas coisas. É preciso pintar uma casa? Pintamos. O carro está danificado e o motor tem de ser mudado? Vamos lá. E, assim, passamos por um pouco de tudo. Sempre que estávamos na Venezuela, estávamos prontos para fazer qualquer coisa. E é bom. Assim sabemos um pouco de tudo.

- E desportivamente também não fez apenas voleibol. Decatlo?

- Sim, sim. O atletismo foi o que me moldou a nível desportivo e também pessoal. Até hoje adoro atletismo. Porque é um desporto com muito carácter. No atletismo temos ultrapassar os medos, todos os dias. É incrível porque...

- Está sozinho?

- Sim, exatamente. Exatamente. É uma luta consigo. É isso. E, felizmente, eu tinha dois treinadores que eram chatos, eram muito chatos, mas no bom sentido [risos]. Eles estavam sempre a dizer: «Edson, um campeão tem de ter atitude.» Não se ganha só correndo. Você ganha a partir do momento em que se levanta de manhã, em que se levanta como um perdedor ou como um vencedor. Todos os dias me diziam este tipo de coisas. Eu era muito envergonhado, muito reprimido, contraído. E todos os dias ouvia: «Edson, o que é isso?! Atitude de campeão. Por que fazes as coisas assim, como um perdedor? Não é assim, é com energia.» E assim por diante até que chegou um momento em que fiz uma mudança mental incrível. Pensava: ‘Ainda tenho de correr mais quanto? Quantas voltas faltam? Jesus! Eu sabia o que tinha de fazer, mas não gostava [risos].

Sporting: Edson Valencia, o oposto que está sempre pronto!

15 março 2025, 08:00

Sporting: Edson Valencia, o oposto que está sempre pronto!

Adversários e companheiros reconhecem-lhe a qualidade que o levou aos Jogos Olímpicos, mas o oposto do Sporting garante que é o mesmo que há seis anos chegou a Portugal longe de imaginar as voltas que a sua vida ia dar

- O que mais gostava no atletismo?

- O dardo, o peso, salto em altura. Adorava, adorava, sim, mas não era muito alto. No lançamento do dardos, o treinador gritava comigo e mandava-me gritar. Estava sempre a dizer para eu gritar e eu pensava: ‘Mas para que é que eu vou gritar?! Até que um dia, depois de tanto barulho, eu gritei. Estava tão stressado que dei um grito que parecia um louco. Acho que não lancei melhor, mas senti-me tão bem. E pensei: ‘Uau, isto é mesmo bom’. Na minha cabeça foi como se estivesse a ganhar uma medalha olímpica! Foi muito bom. A partir daí comecei a exteriorizar muitas coisas que antes eram profundas, algumas a que nem eu conseguia chegar. Por isso, o atletismo em geral, e felizmente graças aos treinadores que tive, que foram como os meus pais para mim, consegui crescer muito e muito para lá do desporto.

«Gostei mais de jogar no Viana do que nos Jogos Olímpicos»

O internacional venezuelano sempre jogou como central. Até chegar ao Viana onde só tinha lugar como oposto. Aceitou, adorou e nunca mais quis outra coisa.

- A pandemia trouxe o fim da ligação a Guimarães e o regresso ao voleibol foi através de uma porta que se abriu em Viana do Castelo e, nova mudança.

- As coisas de que estamos a falar são como uma cadeia, um acontecimento de coisas que parecem todas relacionadas. Todas as coisas que fiz na Venezuela ajudaram-me no momento da pandemia. Depois da pandemia, quando finalmente conseguiu voltar a jogar, em Viana, um novo desafio! Ou seja, a equipa não tinha opostos, mas todos os lugares de central, que era a minha posição estavam ocupados. E eles disseram-me: ‘Edson, só temos um lugar livre para oposto.’ E perguntaram-me: ‘Você está pronto? Estou sempre pronto. Pronto?! Quem tem medo de viver?! Tenho de agradecer ao treinador, que agora no Castêlo, que me deu aquela oportunidade porque não é fácil. Ele conhecia-me como um jogador central e era um grande risco contratar-me, um jogador de outra posição. Não devia ter acontecido, de todo. Nem sequer era um miúdo.

Não gostei mais dos Jogos Olímpicos, do que gostei quando joguei como oposto no Viana! O Viana estará sempre no meu coração e, na parede da minha casa, tenho emoldurada a camisola daquele ano

- E foi aí que começou o novo desafio.

- Mas esse foi um bom desafio. Foi um desafio diário, uma luta diária, transformar aquilo que tinha disso toda a vida a nível desportivo em coisas novas. E começámos o campeonato [risos]. E correu bem, foi lindo. Eu gostava muito, todos os jogos! Joguei tantos anos como central, na Seleção, nos Jogos Olímpicos, mas o que eu gostava era aquilo. ‘Uau, o que é que eu andei a fazer estes anos todos?!' E mudou tudo. Descobri um prazer que não conhecia a jogar voleibol, tinha responsabilidade e gostava. Acho que se adequava mais à minha personalidade. Como central não tinha muita influência no jogo, não tinha tanta participação. Uma duas rotações, saía, e também não sou um jogador muito alto e às vezes era muito difícil chegar bem organizado ao bloco. Foi sempre sofrimento, percebi depois. Como oposto, onde está a bola mais difícil posso ir lá. Adoro, adoro, adoro, realmente. E tudo aconteceu em Viana.

Joguei tantos anos como central, na Seleção, nos Jogos Olímpicos, mas o que eu gostava era aquilo. ‘Uau, o que é que eu andei a fazer estes anos todos?!' E mudou tudo. Descobri um prazer que não conhecia a jogar voleibol, tinha responsabilidade e gostava.

- Viana ao nível de Tóquio 2020, portanto?

- Eu já tinha ido duas ou três vezes ao Japão, num Mundial, num play-off, noutras competições. Sabíamos mais ou menos como as coisas funcionavam, mas por exemplo no pavilhão jogar frente a 16 mil pessoas foi impressionante. O jogo inaugural foi Venezuela contra Japão, foi maravilhoso, um momento que vou guardar para sempre porque foi uma das maiores recompensas desportivas que tive, chegar aos Jogos Olímpicos. Mas, repito, apesar de tudo isso, não gostei mais dos Jogos Olímpicos, do que gostei quando joguei como oposto no Viana! O Viana estará sempre no meu coração e, na parede da minha casa, tenho emoldurada a camisola daquele ano. Porque foi incrível, uma sensação indescritível. Houve jogos em que eu fiz mais de 39 pontos e, no dia seguinte, queria voltar a jogar e fazer mais. As pessoas perguntavam se eu não me cansava e eu dizia que não. Lembro-me bem da semana em que jogámos com o Clube K. Nesse jogo marquei 37 pontos e no dia seguinte jogámos contra o Fonte Bastardo. O Viana estava em último lugar e e vencer o clube K foi espetacular. Mas o Bastardo estava, naquela altura no top3. Era como o David contra Golias e marquei 34 pontos. Em dois dias mais de 70 pontos foi extraordinário, estava cansado? Estava, mas estava feliz, feliz. Eu queria era jogar e marcar. Foi espetacular.

- E depois de armas e bagagens para os Açores. E nova aventura e nova língua!

- Tudo! E como central! Eu queria jogar com oposto, disseram-me logo que talvez acontecesse mas o que queriam era um central. Voltei a sofrer um pouco, mas em termos familiares foi muito bom. Joguei dois anos, mas estivemos três anos nos Açores. Foi espetacular, uma bela experiência. Tanto a nível desportivo como a nível familiar, o ambiente para as crianças era incrível. Foram três anos maravilhosos. Foi incrível!