Pavão, 50 anos da morte: «Fez-me um passe longo, gritou ‘vai miúdo’ e caiu»
António Oliveira, Bené e o malogrado Fernando Pavão (ASF)

Pavão, 50 anos da morte: «Fez-me um passe longo, gritou ‘vai miúdo’ e caiu»

FUTEBOL16.12.202310:13

Ainda hoje, passados 50 anos, António Oliveira tem bem gravadas na memória as últimas palavras de Pavão antes de cair inanimado. Uma viagem ao mundo de Fernando Pascoal das Neves pela voz de quem com ele conviveu de perto, na qual não faltam elogios ao jogador e, sobretudo, ao homem.

Pavão morreu há meio século e quem tenha menos de 65 anos dificilmente terá memórias dele. Como era Fernando Pascoal Neves como jogador? — Um jogador fantástico, física, técnica e taticamente e com a inteligência de criar momentos únicos.

— Pavão, aos 26 anos, era o capitão do FC Porto. Impunha-se pela palavra, pela coerência, rigor ou preferia a autoridade?

— Tinha personalidade forte era ele quem liderava o jogo e a equipa em campo e motivava, com exigência, a ação de cada um.

— Devia ter mesmo personalidade muito forte, pois com 21 anos e José Maria Pedroto a treinador do FC Porto, recusou sentar- se no banco de suplentes frente ao SC Braga, em dezembro de 1968… — Como líder, com forte coerência, valores e personalidade forte, a sua marca era firme e sem retorno, porque sempre assertivo.

— O FC Porto, em 1973/1974, tinha futebolistas como Oliveira, Abel Miglietti, Rodolfo Reis, Rolando, Ronaldo, Marco Aurélio, Flávio e Cubillas, entre outros. Pavão era o craque ou ‘apenas’ o capitão?

—Pavão não chegou a jogar com Cubillas, mas foi um dos que colaboraram com apoio económico para o seu ingresso no FC Porto, porque ele pretendia ter sempre os melhores junto de si. Faleceu antes da chegada do Cubillas.

— Estava-se a cerca de quatro anos de o FC Porto voltar a ser campeão nacional. Acha que Pavão continuaria como titular em 1977/1978, por exemplo?

— Pavão seria sempre titular e, nesse ano, ainda teria condições para continuar a liderar, no relvado, os azuis e brancos.

— Estreara-se na Seleção Nacional com 21 anos, em junho de 1968, em Moçambique, frente ao Brasil, ao lado de médios como Peres, Jaime Graça ou Coluna, por exemplo. Até onde poderia ter chegado na Seleção?

— Na sua estreia contra o Benfica, o grande Coluna rendeu-se ao valor do Pavão. Nessa altura, eram raros os jogadores do FC Porto convocados para Seleção Nacional e Pavão demorou a ser convocado e, num jogo que não recordo, sei que foi substituído para entrar mais um jogador encarnado. Um adversário perguntou-lhe se estava lesionado porque era um dos melhores em campo. Nesse tempo, jogadores do FC Porto eram preteridos por jogadores do Benfica, como todos se recordam.

— Fernando Pascoal Neves, vulgo Pavão. A alcunha chega por ele jogar de braços abertos, é assim?

— Também assim, porque alargava o espaço de proteção e controlo da bola e nunca por vaidade, aliás era o contrário dos que preferem dar nas vistas. 

— Passemos, então, a 16 de dezembro de 1973, o dia da morte de Pavão. Que recorda da palestra de Béla Gutmann, do aquecimento e das últimas palavras de Pavão enquanto capitão? — Sempre as dinâmicas a privilegiar, o famoso passa-repassa-remata. O jogo começou com a batuta de Pavão até ao minuto trágico, num passe longo e dizendo-me ‘vai miúdo’ e caiu naquela tarde muito infeliz. É muito triste recordar essa fatalidade que empobreceu o futebol.

— Pavão morreu após fazer esse passe para si. Há algo de quase místico. Sente algo de especial por este facto?

— Foi um momento em que o destino foi injusto, dramático e que marcou todos os que viram o jogo para sempre, passando de gerações em gerações. Uma marca de enorme tragédia que ainda hoje é partilhada com muita dor.

— Apercebeu-se logo de que algo muito grave podia ter acontecido ou pensou que poderia ser mero caso de rotura muscular ou entorse, por exemplo?

— Após receber a bola pelo passe de Pavão, com o tal ‘vai miúdo’, continuei a jogada e, de uma forma que não consigo explicar, senti que algo estava a acontecer. Premonição talvez, mas com muita dor numa emoção trágica… sentiu-se quase de imediato.

— A assistência médica chegou logo?

—O doutor Vitorino Santana, o nosso médico, entrou de imediato no relvado e juntamente com outros tentou resolver o que era possível naquele momento. Depois, com mais reforços específicos, tudo foi tentado, com a ambulância a seguir célere para o Hospital.

— Havia algum indício de que Pavão poderia ter problemas cardíacos? — Os exames da época eram realizados sistematicamente e Pavão sempre com elevados índices físicos, sempre com boas performances.

— Como se sentia e como se sentiam os jogadores do FC Porto e do V. Setúbal quando o jogo foi reatado?

— Quando o jogo recomeçou, havia uma nuvem de tristeza, uma sensação de tragédia não só pelos jogadores, nitidamente afetados. Aliás, se os jogadores das duas equipas pudessem, sairiam para o balneário, com a tragédia no rosto.

— Como reagiram os adeptos nas bancadas ao facto de Pavão ter saído de maca e ainda sem saberem o que, de facto, se passara?

— Não havia comunicação no estádio, contudo pairou sobre as Antas um manto negro que fazia adivinhar que, nesse dia, estava a acontecer um drama terrível e muitos adeptos, sem ter a noção concreta, deixavam cair lágrimas que ainda hoje, ao recordar esse acontecimento, me caem também. O funeral de Pavão foi o acontecimento que parou a cidade inteira, sentidamente Leal, mas muito triste.

— O FC Porto acabaria por ganhar por 2-0. Houve força anímica para festejar os golos?

— O jogo continuou, com autómatos de cada lado, aguardando o fim que desejavam fosse rápido.

— Quando é que os jogadores souberam que Pavão tinha falecido?

— No fim do jogo, com o silêncio sepulcral , todos ficaram prostrados; nunca vi tantos atletas a chorar…

 — É verdade que ao intervalo vos disseram que ele estava a melhorar?

— Não retenho mas foi a informação para que os atletas conseguissem entrar para a segunda parte.

— Como ficou o ambiente no balneário do FC Porto após terem conhecimento da sua morte?

— O mais pesado possível e o drama vivido com uma tristeza e uma dor que ainda hoje deixam marcas… 

— E o António como reagiu? Tinha apenas 21 anos… — Foi a experiência mais dolorosa que vivi no futebol e que nunca se pode esquecer. Fiquei abatido, as lágrimas foram contínuas e a sensação de perda de um amigo e um enorme jogador foi uma viagem ao fundo da dor.

— Pavão caiu inanimado ao 13.º minuto da 13.ª jornada de 1973/1974. Para quem é supersticioso há um certo simbolismo. Mera coincidência?

— Com ou em simbolismo, o minuto 13 da 13.ª jornada foi a mais infeliz coincidência que ultrapassou a superstição e deixou um fosso enorme dentro de todos nós. Ainda hoje oiço as suas últimas palavras: ‘Vai, miúdo…’ 

— Especulou-se muito, na altura, sobre a causa da morte. Vocês, jogadores, tiveram dúvidas sobre a verdadeira causa da sua morte?

— Nenhuma dúvida. Convém recordar os meios técnicos ao serviço nesse tempo foram os que se conheciam, nenhuma dúvida ficou no ar, porque Pavão era atleta exemplar dotado de forte compleição física.

— Só em janeiro de 1974 se soube que se devera a algo congénito. Era o ponto final nas especulações.

— O tempo acaba sempre por clarificar e desfazer suspeições ignorantes. Pavão teve o destino traçado nesse momento em que caiu inanimado. Nunca esquecerei esse jogo, mas tenho sempre na memória o meu grande amigo e colega de quarto e de equipa que foi um dos maiores.

— Que lugar teria Pavão na história do FCPorto, senão tem morrido?

— Pavão, mesmo com o seu falecimento, tem sempre o mesmo lugar de sempre: um dos nossos maiores do futebol nacional e não só. Mas para todos nós, há sempre momentos em que o evocamos por diversas razões e assim a sua memória nunca se poderá perder.

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