A BOLA FORA «Manuel Machado é o meu pai do futebol» - João Aurélio
Uma longa carreira na Liga ao serviço do Nacional, Vitória de Guimarães e Moreirense. Emigrar nunca fez parte dos planos, mas o desejo de prolongar a carreira fez o defesa aceitar a proposta do Pafos FC, do Chipre.
- À hora que te ligo, o que estás a fazer?
- Enquanto o Rodrigo estava a fazer a sesta, brinquei com a Margarida. Agora estamos os quatro na sala e eu estava a acompanhar o Farense-Santa Clara.
- Estás rendido às brincadeiras?
-Estou um profissional em maquilhagem, antes nem sabia o que isso era. Agora, a Margarida já me maquilha, faz-me penteados, coisas de meninas. Mas também fazemos puzzles, dominó com figuras. O Rodrigo só quer jogar à bola, com ele tenho mais sorte [risos].
- Tenho de assumir que até à preparação da entrevista achei que eras madeirense, só ontem é que descobri que afinal és natural do interior alentejano...
- Sou natural de Beja. Mas é normal pensares isso, porque fui muito novo para a Madeira; tinha dezanove anos e fiquei oito no Nacional. A maior referência que as pessoas têm de mim é desse tempo. Mas eu tenho uma grande ligação à ilha: a Marina é madeirense e a minha filha nasceu lá. O Rodrigo é natural de Guimarães.
- No futuro pensam viver na Madeira?
- Sim, é essa a ideia. Temos lá a nossa casa, os familiares da Marina e muitos amigos. Costumamos passar as férias na ilha e o plano é regressar quando deixar o futebol.
- Como é que foi a infância no Alentejo?
- A minha infância foi muito à base do futebol; eu e o meu irmão estávamos sempre juntos e só queríamos jogar à bola. A minha mãe conta muitas vezes que tínhamos brinquedos dentro de caixas por abrir. Quando recebíamos alguma coisa, íamos logo ver se saltava e se era uma bola. Se fosse abríamos logo; se não, não dávamos muita importância. Também brincávamos muito na rua e na natureza. O Alentejo tem muitos campos e costumávamos apanhar passarinhos e andar de bicicleta com o nosso grupo de amigos. Tínhamos uma gaiola muito grande à qual chamávamos viveiro e onde púnhamos os pássaros que apanhávamos. Até tenho uma história desses tempos…
- Conta…
- Um dia, estávamos a saltar uma rede para apanhar os passarinhos e apareceu a polícia a cavalo. Fomos repreendidos, éramos miúdos…
- Numa entrevista ao Sindicato dos Jogadores, disseste que se não fosses futebolista estarias ligado à GNR. Porquê?
- Tenho um primo que é como se fosse um irmão e com quem me identifico muito. Ele é GNR e é por isso que digo que teria seguido os passos dele. Acho uma profissão muito interessante. Esse meu primo é uma referência para mim e até foi ele que me incentivou no futebol.
- O facto de teres começado a jogar futebol num clube do Alentejo - o Desportivo de Beja - obrigou-te a correr mais do que os outros? Ao falar na tua carreira falamos de persistência?
- Sem dúvida! A visibilidade em Beja era muito reduzida, não é a mesma coisa do que jogar em Lisboa ou no Norte. Lembro-me que a minha mãe dizia muitas vezes: ‘vamos ter aqui um jogador de futebol’, isto para mim e para o meu irmão. Mas eu lembrava-a que era muito difícil, porque não havia equipas da Liga no Alentejo. O sonho estava lá, mas parecia uma coisa distante e quase impossível. Até que apareceu o convite do Vitória de Guimarães, na idade de júnior…. Aí percebi que tinha de sair da minha zona de conforto para concretizar o sonho. Eu e o meu irmão fomos a Guimarães fazer uns testes, mas eles só podiam ficar com um e fui eu o escolhido. Ponderei muito, mas sabia que era agora ou nunca, pois estava no último ano de formação. Foi complicado ficar e ver o meu irmão regressar a Beja, mas tinha de agarrar a oportunidade.
- Vocês são gémeos e partilhavam o sonho do futebol [Luís Aurélio representa o Cluj, da Roménia]. Havia muitas comparações?
- No nosso núcleo de amigos havia sempre comparações de quem é que tinha jogado melhor. E diziam que o meu irmão era melhor. Reconheço o talento dele e lembro-me que, na formação, tinha mais qualidade. Só que eu marcava mais golos, ele passava boas bolas [risos]. E o futebol vive um bocado à base de números, apesar de eu não o ver nesse prisma. Os meus amigos diziam: ‘Tu marcas os golos, mas o Luís é melhor que tu’. Por isso, foi complicado quando fiquei em Guimarães e o meu irmão não. Somos gémeos, muito ligados - a minha mãe vestiu-nos de igual até tarde [risos]. Estive lá meio ano e quando fui a casa nas férias de verão, chorei baba e ranho e só dizia que não voltava mais a Guimarães. Foi muito duro separar-me da família. Mas tenho de dizer que a estrutura do Vitória foi incrível e ajudou-me bastante, sobretudo o doutor Salgado Almeida e o treinador que ia buscar-me à pensão para almoçar ou lanchar comigo. Queriam que eu me sentisse confortável, sabes? Deram-me sempre muita força para continuar, diziam que acreditavam no meu talento e que não me deixariam voltar para Beja. Agarrei-me a isso, fiquei mais um ano e correu bem.
- O teu caminho cruza-se muitas vezes com o do Manuel Machado. Foi o treinador que mais te marcou?
O mister Manuel Machado é o meu pai do futebol. Foi o treinador que mais me marcou e que me projetou. Do Vitória fui para o Penalva do Castelo, do Campeonato de Portugal. Eu nem sabia onde era a cidade, fica ali perto de Viseu. E depois foi o mister Manuel Machado juntamente com o presidente Rui Alves que me levou para o Nacional. Teve muito voto na minha transferência, porque andava a seguir-me e deu-me essa oportunidade. Lançou-me na Liga com 20 anos e foi como um pai para mim. Agradeço-lhe tudo o que sou hoje.
- Manuel Machado é conhecido por usar uma linguagem cuidada e tem muitas frases carismáticas. Nos treinos também era assim?
- Ele é um homem simples. No treino é muito observador, está sempre atento a tudo o que se passa, mas não é muito interventivo nem usa palavras caras. Ele é muito forte nisso e é difícil de bater, mas para os jogadores passava a mensagem de uma forma muito simples e clara. E tinha mesmo de ser assim, porque se não alguns jogadores iam ficar baralhados [risos]. Para ele o futebol é muito simples, não é homem de inventar. Mas com a comunicação social puxava dos galões e achava bem que o fizesse - tem motivos para isso.
- Em 2016, depois de oito anos no Nacional, tens uma segunda oportunidade no Vitória de Guimarães numa fase completamente diferente da tua carreira…
- Quando me ligaram do Vitória foi um entusiasmo muito grande, porque eu gostava muito da cidade e das pessoas - senti-me sempre acarinhado. Sabia que podia voltar a ser feliz naquela casa e foi isso que aconteceu. As conversações foram muito rápidas, as pessoas que estavam na altura conheciam-me bem do tempo da formação e estou grato por me terem dado essa segunda oportunidade. Na primeira passagem, fiquei com pena de não ter jogado pela equipa sénior. Aconteceu depois e fiquei muito feliz.
- Todos os jogadores que entrevistei e que passaram pelo Vitória de Guimarães falaram com carinho da cidade. O que é que a torna especial?
- Olha, eu sei que conheces o Moreno, por isso digo-te que ele é a imagem do clube e da cidade. As pessoas são como ele: puras, com bom coração e muito ligadas ao clube. Só se vive Vitória na cidade e essa paixão é viral. A própria vizinhança é diferente. São amáveis e estão sempre atentos a toda a gente. É claro que ao ser jogador acabava por ser reconhecido e muito acarinhado na rua, mas sentia que as pessoas eram assim por natureza e não porque era futebolista. Em termos de futebol, não é preciso estar com muita coisa, porque é fantástico jogar ali. É uma equipa grande em termos de público.
- Seguem-se duas temporadas ao serviço do vizinho Moreirense. Continuaste na mesma casa?
- Sim, continuei a viver em Guimarães, Moreira de Cónegos é mesmo ao lado. Foi bom, porque a Margarida não precisou de mudar de escola.
- E nunca ouviste umas bocas por teres mudado de clube?
- Nada! As pessoas nunca me tiveram nada a apontar, sempre me acarinharam e algumas diziam-me na rua para voltar ao Vitória.
- Na época passada, o contrato com o Moreirense acabou [30 jogos]. Emigrar era o plano?
- Para te ser sincero, queria ficar para dar continuidade à minha história no campeonato português. A verdade é que o interesse do Moreirense não surgiu, não me abordaram para renovar nem me apresentaram qualquer proposta.
- Achei que tinhas vontade de sair de Portugal, até porque ainda não tinhas vivido nenhuma experiência no estrangeiro…
- Essa foi a imagem que o clube passou cá para fora. Não faz parte de mim falar nestas coisas, mas a verdade é que ficou a ideia de que estavam a tentar renovar o contrato, que estavam a tentar segurar o João Aurélio, mas não foi isso que aconteceu. Não sei o porquê. Entretanto tive alguns convites de outras equipas da Liga, mas achei que não estava a ser totalmente reconhecido pelo meu valor. Surgiu esta oportunidade de emigrar e decidi aceitar pela parte financeira, como é óbvio.
- Achas que o facto de teres 32 anos terá contribuído para essa suposta desvalorização? As equipas apostam cada vez mais em jovens e tendem a olhar com alguma desconfiança para um jogador da tua idade…
- Exatamente! Tocaste mesmo no ponto essencial. O facto de vir para fora também teve a ver com o que acabaste de perguntar. Em Portugal, olham para um jogador de 32 anos como um velho e já só querem dar um ano de contrato. Mas o que é certo é que estava a fazer 30 jogos por época com 31 anos e os noventa minutos. É uma mentalidade muito limitada. Também vim para aqui para ter a oportunidade de jogar futebol até mais tarde; ainda agora defrontei uma equipa que tinha um jogador de 38 anos. É um país que não olha à idade, se estiveres talento e bem fisicamente, jogas.
- És defensor de uma mistura entre experiência e juventude num plantel?
- Sim. Os presidentes e diretores dos clubes esquecem-se muitas vezes deste ponto que é fundamental. Se não tiveres experiência no plantel, pessoas que conheçam o campeonato, fica complicado. Em Portugal só querem meninos para valorizar, mas não vão conseguir fazê-lo com todos. A pressão é muito grande sobre os miúdos e as coisas começam a não correr bem. E todos sabemos que o futebol vive de resultados… Um jogador até pode ter muito talento, mas se os resultados da equipa não aparecerem, o jogador não consegue sair valorizado nem mostrar o seu real valor. Acho que os clubes estão a pecar nesse aspeto: deviam fazer um misto de gente experiente que conhece o campeonato para poder valorizar os ativos. Acho que tem de ser metade, metade.
- Assinaste pelo Pafos do Chipre no final de agosto. Qual é o balanço que fazes destes meses de campeonato?
- Quando me abordaram fui pesquisar à internet e vi que era um clube de meio da tabela para baixo que nunca lutava pelos lugares cimeiros. As pessoas apresentaram-me um projeto aliciante que consistia em mudar a mentalidade e acabar o campeonato nos seis primeiros lugares. É um clube que está a crescer, mas é claro que ainda vai levar tempo. Em termos individuais, a época está a correr-me bem, as pessoas gostam de mim e tenho jogado sempre. Em termos coletivos, estamos em oitavo lugar, ou seja, não é onde queríamos estar. Faltam quatro jornadas para o fim da fase regular e vamos tentar acabar nos seis primeiros para consolidar a tal mentalidade no clube.
- E estás a gostar de viver aí? Já visitei a ilha algumas vezes e adorei…
- Estou a gostar, mas é claro que a experiência poderia ser ainda melhor se não fosse o Covid, porque o país parece incrível. O clima é fantástico, ainda melhor do que na Madeira - está sempre bom tempo, é demais mesmo. E seria muito melhor se pudéssemos passear com os miúdos e conhecer lugares novos. Ainda não fomos visitar outras cidades, porque estamos em confinamento e está tudo fechado.
- Aí funciona como na Grécia: têm de mandar uma mensagem a pedir autorização para sair de casa?
- Sim, é igual. Temos de mandar um SMS, é uma forma deles controlarem as pessoas. Está tudo fechado desde novembro, mas parece que na segunda-feira algumas coisas vão reabrir.
- Com tantos jogadores portugueses no Chipre tiveste azar em não ter nenhum na equipa…
- Quando olhei para o plantel foi isso que me chamou à atenção. Disse logo: que azar. Não sei falar inglês… Mas tenho um colega angolano e outro holandês que também tem nacionalidade portuguesa, por isso já ajuda bastante. E depois junto-me aos colombianos e é com eles que eu me dou mais. Mas aqui as pessoas são boas e recebem bem.
- Qual são as principais diferenças para o futebol português?
- Penso que é a intensidade e o rigor do futebol português que é bem diferente do que existe aqui. A parte física é idêntica, mas a qualidade do plantel é mais baixa. Também estou num clube que está a crescer e que só agora é que começou a melhorar as condições de trabalho. Quando cheguei vi um ginásio muito pequenino e pensei: ‘Onde é que eu me vim meter?’ Mas nota-se que estão em crescimento e que estão a tentar melhorar as coisas.
- Se tivesses oportunidade de voltar a jogar um jogo, qual escolhias?
- Posso mencionar dois? O Portugal-EUA quando representei a seleção nacional pelos sub-20, em Beja (a minha terra-natal) e fiz um golo. E depois, em 2009, o Zenit-Nacional: precisávamos de empatar para entrar na fase de grupos da Liga Europa e marcámos ao minuto 89 [Rúben Micael]. Foi uma alegria tremenda entrar na Liga Europa, ainda por cima eliminando o Zenit que tinha sido o detentor do troféu no ano anterior.
«Eles conduzem à inglesa e são malucos na estrada»
Marina e João conheceram-se na Madeira e estão juntos há oito anos. O Chipre é o país que acolhe a primeira experiência fora de portas da família do lateral-direito. «Não posso dizer que a experiência esteja a ser má. É claro que não é fácil estar fechada em casa com duas crianças e que esta não foi a melhor altura para termos uma vida fora de Portugal, mas estamos todos juntos e isso, para nós, é o mais importante. Temos a sorte de viver num lugar impecável, já criámos amizades e a Margarida até já tem uma amiguinha. Vivemos num condomínio fantástico e estamos rodeados de boas pessoas, desde o segurança, à senhora da loja ou aos vizinhos. O clima é fantástico. Só temos pena que esta situação do vírus nos impeça de conhecer o país que parece ser um sítio lindo para se passear e ver coisas novas», lamenta a técnica de marketing.
A pandemia alterou os planos do casal em relação à escola da filha mais velha - Margarida que completou seis anos em janeiro [Rodrigo vai fazer dois em abril]. Havia muita indefinição relativamente à abertura das escolas, então decidimos que não era o momento ideal. Prefiro que se adapte primeiro ao país para depois sentir-se mais segura na escola. Já abordei a escola inglesa e agora estamos a tentar que a Margarida ganhe mais bases no inglês. Temos feito jogos, trouxe de Portugal uns livros de português e inglês e, nas férias, vamos contratar uma professora para a preparar», conta.
Em Pafos têm uma vida pacata que só é quebrada com a condução dos cipriotas.
«Eles conduzem à inglesa e são malucos na estrada. Eu ainda não tentei conduzir cá, mas no outro dia fui ao supermercado com o João e fomos por uma estrada diferente. De repente, vimos um carro na nossa direção e eu comecei aos gritos a dizer que a pessoa vinha em contramão, mas afinal quem estava em sentido contrário éramos nós», lembra divertida.