ENTREVISTA A BOLA Lara Pintassilgo: de Faro a Istambul, passando pelo Benfica e pela Arménia
Começou a jogar à bola no Algarve, aos 15 anos foi para o Benfica e ficou a viver sozinha em Lisboa, passou pela Arménia até chegar a Istambul. A avançada abre o livro já com muitas histónias
— Lesionou-se no joelho esquerdo em fevereiro e foi operada. Em primeiro lugar, como está?
— A minha lesão foi complexa, porque sofri rotura do ligamento cruzado, mas também foi necessário suturar o menisco. E sofri outras roturas parciais noutros três ligamentos do joelho. Fiz aqui alguns estragos. Mas reagi muito bem à lesão. Há muitos jogadores que passam por aquela fase de não quererem acreditar que têm uma lesão que os vai deixar tanto tempo fora do contexto do futebol. Não reagi assim, também muito devido à boa fase que estava a passar na Seleção e no clube. Fiquei um bocado triste mas também reagi de uma forma positiva. Entretanto vim para a Turquia para ser operada e começar a minha reabilitação. A minha família também veio cá e ajudou-me.
— Está a custar muito?
— O pior foi a primeira semana depois de ser operada. Sentia-me um bocado frágil, devida a tanta medicação que dão. Agora tem sido mais tranquilo. Também já não tenho tantas dores. Claro que incomoda porque ainda não consigo andar sem muletas. Mas, tirando isso, pelo que diziam pensava que seria mais difícil. Isso também depende de cada pessoa. A nossa parte mental mexe muito com isso. Se pensarmos: ‘OK, tenho este problema, mas se fizer gelo de duas em duas horas, se tomar a medicação certa, as coisas avançam de uma maneira diferente.’
— Passando para coisas, seguramente, mais felizes, como é que começou a jogar futebol?
— Sou natural de Faro, o meu pai e a minha família têm muita ligação ao futebol, especialmente o meu pai. Foi jogador e, neste momento, é treinador. Via muito futebol em casa. O nosso verão, no Algarve, era passado quase todo na praia. O meu pai jogava muito futvólei com os amigos e sempre tive muito contacto com o futebol, dentro e fora de casa. Na escola, também gostava de jogar à bola. O meu pai viu que até tinha jeito, porque na praia agarrava sempre numa bola, dava uns toques. Aos poucos também fui percebendo que até tinha algum jeito. O meu pai nunca insistiu que eu ou as minhas irmãs fossem alguém no futebol. Foi natural. O meu pai meteu-me numa equipa de rapazes, Montenegro, de uma zona de Faro e iniciei o futebol.
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— Foi sempre na brincadeira ou levava as coisas muito a sério?
— Comecei no futebol com 9/10 anos, gostava de dar o melhor nos jogos, ganhar e competir. Até aos 14/15 anos levava as coisas a sério, mas não pensava: ‘OK, tenho de jogar e de fazer isto para ser alguém no futebol.’ Só queria desfrutar do futebol e divertir-me.
— Disse que jogava com rapazes. Era melhor que eles?
— É, pá, tenho de admitir que, na altura, sim. As raparigas, nessas alturas, crescem mais que os rapazes. A nível físico notava-se mais a diferença, era mais rápida que eles, o que me ajudava imenso. A partir dos 15 já era muito difícil. Mas até aos 14 anos, sim.
— Eles chateavam-na muito? O que a irritava mais?
— Era mais quando marcava golos. Marcava dois/três golos por jogo, normalmente, e os pais dos adversários começavam sempre a mandar bocas. Nunca fui uma pessoa de ouvir muito pessoal de fora ou mesmo os adversários, mas chateavam-me um bocado, porque só queria ir ali jogar e começavam a mandar bocas por ser rapariga.
— E o que lhe dava mais prazer?
— Marcar golos.
— O pai era muito chato?
— Até aos meus 15 anos, nunca quis saber muito. Podia chegar a casa e dizer: ‘Olha, pai, hoje marquei cinco golos.’ E ele: ‘OK, boa, o que é que queres almoçar?’ A partir dos 15, quando também comecei a ir à Seleção Nacional, começou a estar mais em cima, também para me ajudar. E a partir dessa altura, sim, começou a ajudar-me. ‘Olha, em vez de fazeres isto, tens de fazer aquilo, em vez de fazeres uma rotura vem em apoio.’ Dava-me este tipo de indicações. Até hoje.
— É por essa altura, com 15 anos, que se muda para o Benfica. Como é que foi sair de Faro e vir para Lisboa e jogar no Benfica?
— Fui quando o Benfica criou o futebol feminino. Tinha 15 anos e foi uma mudança... não digo difícil, mas foi tudo muito diferente. Fui de uma cidade, no Algarve, que não tem muitas pessoas ou muito movimento, para uma cidade grande. No futebol, adaptei-me bastante bem. O que me custou mais foi, por exemplo, ter de andar de metro, transportes de um lado para o outro. E também a parte escolar. Havia muitas pessoas que não conhecia, precisei de criar outras amizades. Mas, dentro do difícil, correu tudo bem e foi tudo natural.
— Como era a sua vida?
— A minha família ficou em Faro, claro que me visitava bastantes vezes. Fui para o 10.º ano. Em Lisboa, estudava, estava nas sub-19 do Benfica, treinava-me e morava com mais duas colegas de equipa. Eram um/dois anos mais velhas, tínhamos uma tutora responsável por nós e ajudava-nos. Mas a partir dos 15 anos, desde que fui para o Benfica, comecei a morar sozinha, tive de começar a fazer as tarefas domésticas sozinhas. A minha mãe sempre nos ajudou muito em casa, mas também nos ensinou essas coisas, então foi muito natural.
— Como é que se processa, depois, todo o seu desenvolvimento como mulher e futebolista? Acaba por coincidir com um período de grande ascensão do seu futebol feminino.
— Foi muito bom. Entrei no projeto do clube a partir do zero. Ao longo dos anos houve um grande crescimento. O Benfica ajudou-me imenso, evolui muito como pessoa e jogadora, foi aí que percebi que queria fazer vida do futebol e comecei a ver o futebol de forma diferente. Antes de ir para o Benfica não tinha noção de que havia outras equipas fora do país que jogavam a Champions League feminina, nunca tinha visto.
— Como se descreve como futebolista?
— Considero-me uma jogadora inteligente, tecnicamente boa, rápida, claro que também tenho defeitos, sou pouco agressiva.
— Esteve pouco tempo na Arménia. Surgiu depois o Besiktas. Como se processou essa mudança?
— Infelizmente, não conseguimos apurar-nos para a outra fase da Champions. Alguns clubes contactaram-me. Vi com a minha agente qual era a melhor opção. Claramente melhor que ficar na Arménia um ano. Surgiu o Besiktas, fiz as malas de um dia para outro e vim para Istambul. Foi uma surpresa enorme, muito positivo, não tinha noção de como era a cidade, nem dos clubes. Aqui o futebol é uma religião. São doidos pelo futebol. E está a ser muito bom. Gosto muito como os adeptos aqui apoiam o futebol feminina. Essa é a grande diferença.
— Os jogos têm mais espectadores?
— Sim, sim.
— Como é ser jogadora do Besiktas, um gigante na Turquia?
— É ótimo. As pessoas reconhecem-nos muitas vezes. Se jogarmos no Galatasaray, Fomget, Fenerbahçe ou Besiktas as pessoas, obviamente, vão reconhecer-nos. Dão sempre muito apoio. Recebemos sempre muito carinho das pessoas do clube, de adeptos, patrocinadores. Estão sempre perto de nós assegurar que está sempre tudo bem. Tenho gostado imenso. Está mesmo a ser incrível.
— Qual é a diferença no futebol em comparação com Portugal?
— Ainda jogamos muitas vezes em sintéticos, nisso a Turquia fica atrás. E não são bons. Mas no apoio que dão ao futebol feminino é igual. Sinto muito apoio aqui como sentia em Portugal. Temos sempre muitas pessoas a trabalhar para nós, muito apoio.
— Como são os dérbis com o Galatasaray ou Fenerbahçe?
— Tive oportunidade de fazer os dois jogos. Acho que saí nos dois aos 88/89 minutos. Fiz praticamente o jogo todo. Foi muito bom, muito bom. Joguei fora contra o Fenerbahçe fora e contra o Galatasaray no nosso estádio, onde joga a equipa masculina. Foi ótimo, consegui desfrutar imenso. Foi incrível, ambiente incrível, muitas pessoas a apoiar. Contra o Fenerbahçe jogámos lá sem adeptos do Besiktas, por haver grande rivalidade. Como é óbvio, se não seria a III Guerra Mundial. O mais emocionante foi contra o Fenerbahçe. No final do jogo até houve algumas confusões. E é futebol feminino. Adeptos a quererem entrar em campo. Houve ali um bocado de tensão. Depois de tudo passar... foi muito bom.
— Istambul é espectacular.
— É enorme, rio enorme, várias pontes, vários sítios para estar à beira da água para desfrutar o pôr do sol, a beber um chá turco que é ótimo. A minha casa também tem vista para o rio, para uma ponte, há muito edifícios em que é possível ver a cidade. A população é muito grande, é raro vermos a mesma pessoa duas vezes aqui, só mesmo os meus vizinhos. De resto, é impossível. E, sim, é uma cidade muito bonita. Não estava à espera.
— Também teve a felicidade de ter aí no Besiktas a Inês Maia e a Ana Teles para ajudar.
— E a Evy [Pereira], principalmente a Evy, porque joguei com ela no Benfica. A adaptação foi muito fácil. Mesmo as minhas colegas, não falando muito bem inglês, tentaram sempre ajudar e apoiar, porque sabem que não é fácil mudar de país e estar longe de quem mais gostamos, da nossa família. A minha agente e o pessoal do clube ajudaram imenso. Poucos dias depois de ter chegado estava a jogar, fui a jogo passado uma semana de começar a treinar-me. A partir daí foi tudo muito natural. Felizmente fui aposta do treinador e jogava sempre. Foi positivo. Não estava à espera.
— Está a pensar ficar muito tempo por Istambul ou pelo estrangeiro? Quais são os seus planos?
— Pretendo ficar no estrangeiro nos próximos anos. Tenho evoluído imenso, principalmente como pessoa. Gosto imenso de estar aqui. Neste momento não me vejo a deixar o estrangeiro. Nem a Turquia.