André Martins «Jesus disse-me: “Se tivesses mais um palmo e fizesses mais uns golinhos”…»

André Martins deixou de jogar futebol e agora é comentador na Sport TV. O médio formado no Sporting esteve à conversa com Tânia Vítor, depois de terem partilhado tempo em Israel, último destino do médio como futebolista. Com ele, esteve também a companheira, Matilde.

A tua história no Sporting começa aos 12 anos. Como é que a tua vinda para Lisboa, era choradeira todos os dias, mas passavas aquela imagem forte aos teus pais de que está tudo bem ou assumias realmente que era difícil?
Choradeira todos os dias e não passava a imagem que era forte. Há um episódio que conto sempre. Havia outras equipas interessadas e fui eu que escolhi ir para o Sporting, mas, no fundo, sem saber muito bem para o que é que ia e nem estava sequer preparado para isso. Lembro-me no dia em que fico na academia, os meus pais são de Santa Maria da Feira, portanto são 3 horas de caminho, ao final de 20, 25 minutos estar a ligar a perguntar se eles já tinham chegado a casa. O meu pânico era tanto de estar ali sozinho que lhes liguei ao fim de 20 minutos. Foi de facto difícil, até ali ao Natal. Apanhei um senhor, uma pessoa que já tinha muitos anos daquilo, que tinha muita experiência, o senhor Aurélio Pereira, e que no fundo jogou um bocadinho com isso, e disse-me que se de facto eu quisesse desistir, podia ir para a casa dos meus pais, mas que podíamos fazer um pacto. Aguentava ali só até ao Natal, e se chegasse ao Natal e não conseguisse… a verdade é que ele sabia que passando aquele primeiro mês que as coisas iam começar a correr melhor, e assim foi, depois aguentei-me até aos 24, 25.

E os teus pais faziam sempre esse esforço de poder acompanhar-te também ao fim de semana, imagino.
No primeiro ano, todos os fins de semana. Jogos fora e em casa foram todos os fins de semana durante um ano da vida deles. Não acho que seja obrigação. Sou-lhes muito grato por isso.

 Tu tens muitos anos de Sporting e nós temos um amigo em comum com quem falei. O João Pereira dizia-me que tinham um ritual de parar ali na bomba, ao pé do estádio e de comer um gelado, não é?
Sempre. Durante essa época fazíamos uma coisa muito engraçada. Dois dias antes de cada jogo tínhamos um jantar. Eu, o João, o Tiago e o André Santos. Era como se fosse um pré-estágio. No dia de estágio, íamos sempre juntos no mesmo carro, parávamos nas bombas ao pé do estádio, comíamos um gelado, levávamos um saco de gomas, mas havia horário para comer as gomas, não podia ultrapassar muito o horário que o João é uma pessoa muito exigente.

 Ele disse-me que comias sempre as gomas antes dele...
Não, não, não, ele é tão ou mais guloso do que eu, só que ele consegue controlar-se um bocadinho. Por o conhecer, de facto às vezes começava primeiro.

 Por falar em horários, também havia ali uma hora para se desligar o telefone, as luzes, para se prepararem para o dia seguinte. Ele era rigoroso e tu gostavas desse rigor, ou ias assim, porque tinha de ser?
Custou-me ao início, é verdade, porque não estava habituado, não estava sequer preparado, era outro nível, outra exigência, e no fundo sou-lhe grato. Para mim, foram ensinamentos que levei para mais tarde. A verdade é que o João, acho que posso dizer isto com toda a certeza, é um dos melhores profissionais com quem trabalhei, uma pessoa muito exigente, que cumpre à risca aquilo que tem de ser. Estipulava um horário para desligar o telefone, não gostava de barulho no quarto.

Para as dez e meia?
Exatamente, e eu fui atrás da onda. A verdade é que também a mim fez bem, porque acabei por me habituar àqueles horários, e ajudou-me bastante na minha performance.

Ele falou-me também num episódio em que vocês fazem parte de uma equipa suplente, num treino, na altura do Jorge Jesus, e que estão a dar, palavras dele, um chocolate à equipa titular, mas que o treinador não achou assim tanta piada. Queres-me recordar esse episódio?
Acontece muito no futebol, normalmente a equipa que vai jogar, leva sempre uma grande “chocolatada” da equipa que não vai jogar, dos suplentes. E isso às vezes causa algum desconforto, não tanto aos jogadores, mas ao treinador, porque fica com um bocado desconfiado se será mesmo aquela equipa certa para jogar. Isso aconteceu connosco, estávamos de facto num bom momento, a equipa estava bem, e ele parou o treino mais do que uma vez, a chamar-nos a atenção por estarmos a jogar tão bem. Eu e o João temos esta química muito boa, que às vezes não precisamos de falar, bastava olhar um para o outro para sabermos o que é que estávamos a pensar. Lembro-me dele [Jesus] me ter dito até, inclusive, que eu faço um movimento qualquer e ele volta a apitar para parar o treino e diz-me “pá, tu de facto és muito inteligente, se tivesses mais um palmo e fizesses mais uns golinhos, as coisas se calhar eram diferentes”. Mas eu acho que esta é a parte boa de Jorge Jesus, não pensa, tem o coração ao pé da boca e às vezes diz as verdades, não aquilo que tu queres ouvir, mas que precisas de ouvir.

Vocês tinham miúdos com muito talento no plantel, dava alguma azia às vezes não ter mais minutos?
Dá sempre. Depois do jogo do Sporting para a Liga dos Campeões, vi o Nuno Santos a falar, e isto é a mais pura das verdades, qualquer jogador que seja profissional ou que queira ser jogador profissional e que não diga que quer jogar sempre, está no sítio errado. Por muito que sejas novo, com pouca experiência, mas se tiveres qualidade e se sentires que podes sempre ajudar a equipa, vais querer jogar sempre.

Li numa entrevista em que dizias que o Sporting era como uma cadeira de sonho. Sentes que o facto de teres crescido naquele ambiente, de estares habituado àquela realidade de um clube grande, te fez acomodar de certa forma e em algum momento terás sido prejudicado?
Seguramente foi. Primeiro, devia ter sido mais ambicioso, cresci ali no fundo para o futebol e como pessoa, e quando chego à primeira equipa, de facto para mim foi concretizado um sonho. Deveria ter pensado, “estou aqui, quero mais do que isto, vou partir daqui para mais” e relaxei ali um bocadinho. Fui durante algum tempo titular e isso também se calhar me fez relaxar. Hoje em dia, quando estás relaxado, quando achas que és dono do lugar, estão sempre a aparecer jogadores novos com muita qualidade, mais ainda nestas equipas, portanto é sempre muito complicado se não trabalhas no máximo.