«Eusébio nunca me marcou golo isolado» (ou o que Américo «leva para a cova»…)
Américo, guarda-redes do FC Porto. Foto: ASF/PRESS PHOTO AGENCY

«Eusébio nunca me marcou golo isolado» (ou o que Américo «leva para a cova»…)

NACIONAL23.09.202317:46

Guarda-redes do FC Porto (que morreu sexta-feira) só jogava com luvas quando era dia de chuva e de um penálti de Eusébio saiu «enjoado». Num «encosto» de Santana começara a abrir-se o seu drama. Do Mundial de 1966, saiu com a convicção: «Se tivesse jogado, teríamos sido campeões!»

Até morrer na sexta-feira (se é que gente como ele morre alguma vez…) Américo Lopes polvilhou a vida com «orgulho» que, quem o conhecia bem, sabia que não era vaidade: «É verdade, tratavam-me por Guarda-Redes Suicida pelo modo valente com que me atirava aos pés dos avançados. Não sei de onde veio a alcunha. Mas tive muitas. E se era o… suicida também era as mãos não sei de quê – de ferro ou de ouro. Mas ainda havia quem me tratasse pior – como o homem que tinha uma vaca em casa que tirava o leite para ter a sorte que tinha. O que não tinha, sei bem: não tinha medo de ninguém, medo de nada! E, então, se eram altos como o Torres ou fulgurantes como o Eusébio, eu dizia-lhes que, comigo, era matar para não morrer. Não digo que eles tivessem medo, mas que era questão de impor respeito, era. E, sim, esse é orgulho que hei de levar para a cova: o Eusébio nunca me marcou um golo isolado!» 

SEM LUVAS, ENJOADO COM TIRO DE EUSÉBIO

Sendo, pois, de livres e penáltis os golos que Eusébio lhe fez – raros foram os guarda-redes a poderem ufanar-se do que Américo podia: «Era, o Eusébio tinha um pontapé impressionante. Eu defendia sempre sem luvas, só nos dias de chuva é que as punha. Foi assim que, certa vez, defendi uma grande penalidade do Eusébio – e só Deus sabe o que eu sofri. Sofri, sim senhor: a bola bateu-me na zona abdominal, com tanta força me bateu que me deixou… Mas, disso, nunca ninguém soube - eu era um duro, rijo para caraças e nunca daria parte de fraco, dizendo-o!»

O SONHO DO FILHO DO SENHOR DAS CORTIÇAS

O pai tinha uma empresa de cortiças e Américo Lopes contou-o a Filinto Lapa (em A BOLA do dia 1 de setembro de 1969, em véspera da sua Festa de Despedida de jogador): «Nasci a 6 de março de 1933 em Santa Maria de Lamas e por isso o União de Lamas foi a primeira porta onde eu bati. Simplesmente foi-me negada autorização para participar em torneios oficiais. O senhor ministro não autorizou que jogasse com menos de 16 anos e fui-me embora. Mas eu sonhava com o futebol, com os campos, com a bola. Na minha mente, uma lenda habitava: como deve ser bom jogar a sério! Naquela altura, falava-se nos Azevedos, nos Barriganas. Eu ouvia na Rádio: 0 guarda-redes do voou, voou de um poste ao outro! Espantoso! – e decidi-me: tenho de ser jogador de futebol e tenho de ser guarda-redes – para também voar de um poste ao outro! Para isso, pelos meus 17 anos, fiz as «malas» e fui apresentar-me no FC Porto. Fiquei logo nos juniores e, meses depois, na época de 1951/52, o meu nome já aparecia nos jornais. Em 1952!53 alinhei nas reservas, o titular do primeiro time era o grande Barrigana – e eu só queria ser como o grande Barrigana.»

NA TROPA LONGE POR NÃO SER DO BENFICA OU SPORTING

Aos 20 anos surgiu-lhe o habitual aviso para ir à tropa. Não a Filinto Lapa não o disse assim (e se o dissesse a Censura não permitiria, obviamente, que saísse assim…) – haveria de dizê-lo, depois, amiúde: «Na tropa estive um ano e meio em Castelo Branco e em Abrantes porque era do FC Porto. Se fosse do Benfica ou do Sporting não tinha lá ficado, os clubes não deixavam, teria, certamente, cumprido serviço bem mais perto do Porto – ou no Porto mesmo. Pedi aos responsáveis do FC Porto para me ajudarem a livrar do serviço militar e eles foram sempre adiando. A dado instante, deram-me um saco com uns calções, umas luvas, uma camisola e um par de chuteiras, para eu ir treinando por onde andasse na recruta - só que não havia campo para o fazer. Durante ano e meio tiveram, portanto, um jogador de farda e que nunca treinou, nunca jogou. Isso sim: pagaram-me sempre!».

NA PRIMEIRA VEZ, UMA GRANDE «BARRACADA»

A sua primeira vez na primeira equipa do FC Porto dera-se (por finais de 1952) em Évora – por Barrigana se ter magoado: «Isso ainda foi antes de me ter de apresentar no quartel! Artur Baeta, que estava nesse encontro, e o técnico Lino Taiolli, acreditaram em mim e… olhe, foi uma grande barraca. O Correia também se estreou a central e, nessa tarde, todos nós nos fartámos de meter água». 

Livre da tropa, retornou às Antas com o FC Porto a lançar, com Dorival Yustrich, ao título de 1955/1956. «A baliza tinha a lotação completa, à minha frente estavam o Pinho e o Acúrsio - e então, fui de empréstimo para o Boavista. Quando, um ano depois, o Yustrich voltou, perguntou por mim. Está no Boavista — disseram-lhe e ele respondeu: Mas eu o queria aqui! Talvez para evitar conflitos, alguém adiantou: Não dá, já está comprometido oficialmente com eles. O que não era verdade. E, por isso, lá fiquei. Em 1957/58, treinador do FC Porto passou a ser Otto Bumbel, na sequência do despedimento do Yustrich por causa daquela zaragata dele com o Hernâni, em que andaram os dois à panda – e, então, sim, voltei ao FC Porto.»

COM GUTTMANN, CAMPEÃO COM UM JOGO

O FC Porto fora a São Paulo descobrir Béla Guttmann – e no primeiro jogo do campeonato de 1958/1959 (desse campeonato ganho com Inocêncio Calabote a marcar-lhe a história) foi a Américo que deu a baliza. Não, não foi só pelos três golos sofridos no empate com o Vitória de Setúbal (na primeira jornada) que não mais lá voltaria – foi por continuar a ter o Pinho e o Acúrsio «à frente» (e, esses 90 minutos nas Antas, foram o bastante para lhe pôr o único título nacional no palmarés.

«MAGRIÇO» SEM MINUTO (E QUEIXA SÓ DEPOIS)

Algures por 1963, da baliza do FC Porto logo saltitou Américo para a baliza da seleção: «Internacional fui pela primeira vez aos trinta anos – e pela seleção A joguei 22 vezes, mais uma pela B». Apesar dos brilharetes que se soltaram mãos durante o apuramento para o Mundial de 1966 (e não só, claro, quer antes, quer depois…) em Inglaterra não passou de suplente, primeiro de Carvalho e depois de José Pereira – e a Filinto Lapa (nessa sua entrevista do adeus) não se revelou agastado com isso, apanhando-se-lhe apenas o murmúrio: «É verdade, fui Magriço e… não joguei. E se o Manuel da Luz Afonso não me pôs a jogar foi porque entendeu que outros estariam em melhor forma do que eu. Por isso não, não estou ressentido. Aliás, nesta hora da despedida, na hora da análise à carreira que tive, saio sem rancor a ninguém. Aceito tudo.»

Largos anos após, sim: Américo destravou, enfim, o que guardara em mágoa e a acrimónia (no que era, afinal, para si, um sinal dos tempos…) «Não quero parecer vaidoso, mas era muito superior ao Zé Pereira e ao Carvalho. Comigo na baliza, acho que Portugal podia ter sido campeão mundial. O selecionador Manuel da Luz Afonso nunca me deu qualquer explicação, era de poucas palavras. E o Otto Glória, o treinador de campo… mandava pouco. Sendo bom o ambiente na seleção, os jogadores do FC Porto ficavam sempre um bocado em segundo plano. Era a mentalidade da época…»

Américo. Foto: ASF

PRIMEIRO VENCEDOR DO PRÉMIO DE A BOLA

Já com José Maria Pedroto a treinador, foi com Américo em lustro que o FC Porto ganhou a Taça de Portugal de 1967/1968. Retornando a titular da baliza de Portugal – tendo, nessa época, A BOLA criado o Prémio Somelos-Helanca para consagrar o Melhor Jogador do Campeonato, foi ele quem o conquistou - recebendo, para além de monumental troféu, cheque de 20 contos. (Três contos era, então, o ordenado mensal que o clube lhe dava e 113 contos custava o Mini Morris que, nos anúncios por alguns jornais, tinha a publicitá-los raparigas em curtos calções de futebol e a «moral e os bons costumes» achava um «despudor» mostrarem-se, assim, as pernas ao léu.)

COM PEDROTO, A REBELIÃO DO ESTÁGIO À TERÇA

Na temporada seguinte, a ideia que deu foi que o FC Porto poderia quebrar, enfim, enguiço que se arrastava em abalo desde o dia em que Béla Guttmann saltara, sorrateiro, para a Luz (confessando que a razão era o reumatismo da mulher não aguentar bem o «clima do Porto – e ele também não): voltarem os portistas a campeões. Líderes do campeonato, coube-lhes, na segunda eliminatória da Taça de Portugal (de 1968/1969) defrontar o Benfica na Luz. Perdendo por 3-0 – e em A BOLA do dia seguinte nem por isso se notou desesperança em Pedroto: «Este desaire até pode ser muito benéfico na luta pelo título. Para o campeonato não viremos, decerto, à Luz, atuar outra vez au ralenti.» 

Para «ganhar o campeonato», José Maria Pedroto submetera à Direção, presidida por Afonso Pinto de Magalhães, «plano de ataque» que, num dos seus pontos, solicitava que «todas as deslocações para os jogos no Sul passassem efetuar-se de avião, a fim de poupar os jogadores à fadiga das deslocações em comboio» - e foi outra «novidade» que pôs o rastilho da escaramuça em fogacho: obrigar os jogadores a entrar em estágio à terça-feira. 

Após o primeiro treino a seguir à derrota na Luz, levaram-se os jogadores ao balneário do Hospital de Santo António para banhos de imersão e antes do arranque para o Hotel Suave Mar (onde fariam estágio), Eduardo Gomes, o capitão de equipa, abriu o «movimento de desobediência», informando que não seguiria por não querer deixar tanto tempo ao abandono o negócio que mantinha como proprietário de um café nos arredores da cidade. Custódio Pinto (outro dos comerciantes da equipa) seguiu pelo mesmo caminho. Ouvindo-os, Alberto (o António Alberto Teixeira que era o universitário do plantel) mostrou-se, ousado, em solidariedade com os companheiros. Aturdido, Pedroto ainda tentou demovê-los – e, não o conseguindo, atirou-os, de castigo, para treinos nas reservas.

PARA A «LISTA NEGRA» (SEM EXPLICAÇÃO)

O que sucedeu com Américo foi o que Américo recordou a Filinto Lapa (em A BOLA): «Se, no incidente com o Pedroto, fui apontado como um dos cabecilhas, isso só se deve ao meu espírito de solidariedade para com os meus colegas. E, já agora, vou-lhe dizer o que nunca disse a nenhum jornalista. Veio o lamiré: Américo, o Pedroto quer que a gente vá para estágio, mas a gente não vai – e quando o Pedroto me disse: Américo, prepara-te para ires para estágio! - respondi-lhe: Só se me explicares bem o porquê dessa decisão! E pronto: fui logo considerado cabecilha. Só queria que me explicassem como é que, tendo eu tomado contacto com os meus colegas, com o treinador e com a sua estranha ordem, às 11 horas e tendo sido tomada uma hora antes, no Estádio das Antas, a deliberação de todos os jogadores de não quererem ir para estágio, eu fui apontado como um dos «principais» do movimento. Todos aderiram à decisão de não irem para estágio e só eu e mais três colegas é que fomos para a «lista negra»!» 

Já com Rui no lugar de Américo, o FC Porto bateu a CUF no Barreiro – e, só na semana seguinte é que o chão começou a fugir-lhe dos pés (apesar de o sonho ainda não): graças a golo de Manuel António (que após passagem pelo FC Porto regressara a Coimbra para terminar o curso de Medicina e haveria de ser o último médico de Miguel Torga) a Académica ganhou nas Antas. 

Américo. Foto: ASF/PRESS PHOTO AGENCY

DEPOIS DO «JANTAR ÍNTIMO», CABEÇAS A ROLAR

Na véspera do FC Porto-União de Tomar (da jornada seguinte), Afonso Pinto de Magalhães convidou o plantel para «jantar íntimo», pondo (ostensivo no seu simbolismo) em lugar de destaque os jogadores que Pedroto suspendera (considerando-os «cabecilhas de uma rebelião»). 

No regresso tardio ao Lar, Atraca não acatou a ordem de António Morais, o treinador-adjunto, para recolher de imediato ao quarto – provocando-o em remoque até: «Ainda não fiz a digestão, se quiser vá fazer queixa ao presidente». Indo ele e Pedroto fazê-lo, em vez do presidente aceitar a «expulsão imediata» do jogador que lhe propunham, Pinto de Magalhães desculpou-o: «O rapaz não teve culpa de ter jantado tarde.» O treinador atirou-lhe, brusco, pedido de demissão, o presidente não lhe aceitou a renúncia – e, como das Antas saiu o União de Tomar com 2-2, aí sim: rolou a cabeça de José Maria Pedroto. 

Fora antes da partida com o União de Tomar que Américo percebera «insuportáveis» as dores no joelho de Américo que o precipitaram à operação que lhe marcaria, fatal, o fim. E, com ele assim, campeão foi o Benfica (graças a empate na Luz já com António Morais no lugar de treinador interino e Rui na baliza que fora de Américo…) 

DRAMA COMEÇOU NO JOGO COM O BENFICA, NO ENCOSTO DE SANTANA

Bem antes começara o seu dorido fado (sem que lhe imaginasse tão dramáticas as consequências…), o fado que saltitou, assim, da boca de Américo para a pena de Filinto Lapa (nessa edição de A BOLA de 1 de setembro de 1969): «Por 1961, num jogo em Lisboa, contra o Benfica: o Santana encostou-se a mim, não sei se intencional se casualmente, e o meu joelho direito acusou o toque. Saí faltavam dez minutos para o fim do primeiro tempo e recebi tratamento. No segundo tempo, reentrei e o Santana voltou a tocar-me no joelho, não sei se intencional se casualmente. E então, foi de vez. Tive mesmo que abandonar o campo. Empatámos 1-1 e estive quinze dias parado. Voltei e andei um ano a carregar sobre o joelho direito. Não tinha dores e o dr. Sousa Nunes não viu mal em que eu continuasse a jogar. Até que o dr. Sena Lopes teve de me operou. Antes do FC Porto-Tomar, senti dor aguda, fui ao médico, ao dr. Filipe Rocha, que, após exame com radiografias, diagnosticou o mal irreparável: a rotura do menisco degenerou. Sim, o exame clínico ditou que tudo começara em 1961, naquele jogo com o Benfica. A deformação óssea que tenho, agora, no joelho e me corta a autorização para jogar futebol, foi-se processando ao longo de todo este tempo. Antes disto, olhe… o que se passara comigo foi, afinal, coisa pouco – coisa pouca mesmo tendo partido um pé, os dois pulsos e dois dedos. E parece que tenho, também, deformação dos ossos da bacia por outros encostos. Da bacia e os ombros.»

Américo: Foto: ASF

COM O BENFICA NO ADEUS E A MÁGOA DE EUSÉBIO NÃO

Esses foram suplícios que lhe vieram por ser como era: ir sempre atrás da bola como um gato ia atrás do rato, mergulhando, valente, aos pés dos avançados que lhe apareciam afoitos e vertiginosos ou voando, acrobata para a bola sempre a desafiar as leis da gravidade. Ao regressar do Mundial de Inglaterra, Américo abrira, no Porto, loja de material desportivo a que chamou Magriço – e, para o jogo da sua despedida, ofereceu-se o Benfica. 

O joelho que o traíra aos 36 anos, permitiu-lhe apenas um minuto na baliza do FC Porto (que perdeu por 3-0). Das bilheteiras levou 300 contos – e não, nessa tarde, Américo não teve, consigo o Eusébio (foi a sua única «desolação»). Ele, o Eusébio, andava, ainda, em arrastadas negociações com Borges Coutinho, o presidente benfiquista – e em A BOLA do dia 4 de setembro de 1969 (onde se travava em óbvio destaque a «homenagem a Américo») a manchete fez-se com Eusébio a reafirmá-lo: «A minha proposta mantém-se nos 4000 contos». Não saindo dos 4000 contos (por três anos, com parte da verba paga em… prédios) – foi mesmo isso que o Benfica se comprometeu dar-lhe pela renovação, logo depois (renovação que tivera a tratá-la Silva Resende, jornalista de A BOLA, além de advogado já ilustre na praça que pelo trabalho não quis um tostão que fosse).