«Brasileirão deixou-me água na boca e gostaria de lá voltar»
Em 2023, Armando Evangelista levou o Arouca à Europa e arriscou o salto para o Goiás, clube de orçamento limitado que vivia aflito na Série A. Acabou por sair em rutura com a Direção por «imposições» que considerou inadmissíveis. Apesar disso, diz que valeu a pena fugir da zona de conforto e acredita que o seu trabalho foi valorizado no Brasil
O ano de 2023 foi de contrastes para si. Sai de três anos fantásticos no Arouca para depois agarrar um projeto no Goiás, que estava em 18.º lugar e tinha o orçamento mais baixo do Brasileirão...
- Verdade. Começando pelo Arouca: foram três anos e a minha carreira enquanto técnico tem conhecido delicadas etapas pelas quais tenho passado. Começo a trabalhar na formação, faço o percurso todo lá, desde as categorias mais baixas até à equipa B do Vitória, ou seja, há um processo de aprendizagem do qual me orgulho e acho que foi uma etapa muito importante naquilo que foi o aporte de conhecimento enquanto treinador. Na segunda fase há uma adaptação ao futebol sénior, porque é diferente trabalhar a esse nível, em que passo um período muito largo a trabalhar na II Liga. Ao fim de alguns anos e uma série de jogos é óbvio que havia interesse e vontade de aprender e evoluir e era importante ter oportunidade na I Liga. E isso acontece com o Arouca, mas foi necessário pegar na equipa e subir. A verdade é que chegámos à I Liga e depois de uma permanência e qualificação para as competições europeias queria tentar algo diferente, porque sentia que na minha evolução como treinador era importante vivenciar outros campeonatos e lidar com outro grau de dificuldade e é aí que aceito o Goiás.
- O Goiás tinha despedido dois técnicos e estava em situação aflitiva. Tinha a noção do quadro que enfrentava?
- Sabia a posição em que estava, que era o clube com orçamento mais baixo, que não tinha dinheiro para atacar a segunda fase do mercado, mas face ao campeonato que é, às dificuldades que representa e aquilo que me ia permitir pensar enquanto estratégia, de me reinventar, aceitei, consciente do que ia encontrar.
- Teve um ciclo muito bom que permitiu ao Goiás afastar-se da zona de descida. O que aconteceu para não ser possível manter esse nível?
- Isolando esse ciclo, temos um período em que a competição nos dava microciclos de sete ou oito dias de um jogo para o outro. Quando falamos no Brasil, isso faz toda a diferença na organização, não apenas futebolística, na organização do clube em si. Com este espaço era possível termos um tipo de organização que nos permitia chegar aos jogos com estratégia bem montada e trabalhada, fisicamente frescos, porque tínhamos tempo para viajar, e a verdade é que conseguimos fazer série de nove jogos sem derrotas. Quando entrámos na reta final e a jogar de dois ou de três em três dias as coisas complicaram-se um bocado. Começaram a aparecer os jogos de suspensão, a cada três amarelos um jogador é castigado no Brasil, aparecem muitos jogadores pendurados, a cair, num grupo que tinha as dificuldades e qualidade que tinha. Com um tempo de recuperação tão pequeno, uma logística tão difícil, sem jogadores tão importantes naquela fase, ficou mais difícil. Essa é uma justificação, existem outras...
- E vamos falar delas. Para um clube sediado em Goiânia, quais são as dificuldades com as viagens?
- Goiânia fica no Centro-Oeste do Brasil. Para São Paulo há voos diretos, para o Rio de Janeiro temos de fazer escala em São Paulo, com uma malha aérea difícil e horários inapropriados para o descanso dos atletas. Tivemos alturas em que estivemos 16/17 horas num aeroporto à espera de ligações. No final de um jogo às 20 horas, era jantar e acordar às três da manhã para apanhar outro voo, com mais uma escala, para um dia ou dois depois jogar novamente. Há uma logística que tem peso nos resultados.
- Acaba por sair em rutura, falando em imposições que considerava inaceitáveis. Que tipo de imposições foram essas?
- Não vou fugir à questão. O Goiás tinha dois presidentes, um do Conselho Deliberativo e o outro do clube. Quem me contrata é o presidente do Conselho Deliberativo [Edminho Pinheiro]. Numa fase em que as coisas estavam a correr bem, num ano de eleições no Goiás, havia muita gente que queria protagonismo. Perante isso, há uma coisa que até admito e gosto: de conversar, de ouvir o que se pensa, mas imposições e intromissão no meu trabalho, não. Opiniões, sim, discussão, sim, imposições, nem pensar. No fundo, foi isso que se passou, tenho princípios e há coisas que não aceito.
- Essas imposições foram de quem o contratou?
- Não, foram do presidente do clube [Paulo Rogério Pinheiro], até porque o mandato de quem me contratou não terminava agora.
- Se não fosse essa situação, admitia orientar o Goiás no Estadual e depois na Série B?
- Sou sincero, uma ou duas semanas antes de sair propuseram-me a continuidade, fosse na Série A ou B. Havia possibilidade ainda de evitar a descida. Estávamos a conversar em cima disso, até que chegou a um ponto que achei não haver condições de continuar. Dentro de um projeto e daquilo que queriam alterar, com base nas sugestões num dossiê que elaborei e apresentei ao Edminho, eles queriam seguir isso e queriam a minha continuidade, fosse num cenário ou noutro. Tiveram a noção de que o caminho para fazer crescer o clube era aquele. Mas as coisas não aconteceram assim.
- Os canais de contratações eram complicados?
- Num país com números de praticantes tão elevados e com escolha tão grande, faz-me confusão que alguns clubes não tenham uma base de dados na hora de contratar. Nos clubes sem poder de compra, então, é pior. Fácil é sinalizar o jogador que dá nas vistas, mas esses custam muito dinheiro. Um clube que não tem orçamento para contratar dessa forma tem de ter uma equipa de scouting para esses jogadores chegarem ao clube. Isso não existia. Havia muitos aspetos que eram importantes criar com orçamento reduzido, para sermos competitivos.
- A dada altura foi associado a Cruzeiro e Athletico Paranaense. Isso é sinal de que deixou boa imagem no Brasil. Pergunto se isso o faz querer voltar lá em breve?
- Todo o feedback que fomos recebendo no tempo que lá passámos, mesmo depois de ter voltado a Portugal... Acho que o nosso trabalho saiu valorizado, porque toda a gente compreendeu o contexto em que estávamos e o que conseguimos fazer. A verdade é que potenciámos vários jogadores, alguns não eram conhecidos no Brasil. O Hugo [lateral-esquerdo] que foi para o Corinthians, o Morelli [médio], que teve passagem pela formação do Vitória, na equipa B, de meio ano, e estava nas divisões inferiores do Brasil e hoje é reconhecido; o Lucas Halter [central] que foi para o Botafogo. Houve ali trabalho, uma organização que era elogiada enquanto equipa. Houve abordagens, por questão ética não vou colocar nomes, mas houve. Nunca escondi que o Brasileirão me deixou água na boca.
- É difícil, desafiador, mas fascinante?
- Exatamente. As equipas mais organizadas são as que estão mais próximas de ganhar e essa foi a principal ilação desse meio ano no Brasil. Se não houver qualidade não se faz milagres. Sabendo disto, ter a abertura necessária para chegar a um clube e poder trabalhar vários departamentos, com organização, e fazê-lo crescer, é um projeto aliciante. Agora, sabemos que no Brasil e em quase todo o lado o tempo de um treinador é muito curto. Mas gostaria de lá voltar porque há uma série de ideias que quero pôr em prática.
- E do futebol português houve abordagens?
- Houve abordagens, mas numa altura em que por motivos fiscais não podia trabalhar em Portugal. É uma questão de friamente procurar o próximo caminho nesta fase da carreira. Quero agregar experiências diferentes, o futebol é global e quando estamos muito tempo ligados à nossa bolha abdicamos de conhecimento que nos faz evoluir.
Do fenomenal Abel ao excecional Caixinha
- Abel Ferreira soma nove títulos no Palmeiras. Este fenómeno explica-se pela competência do treinador ou pela forma como o edifício organizativo foi montado no clube com a ajuda do treinador?
- O Abel tem todo o mérito. Além de ser um grande treinador, teve capacidade de gestão e de organização. A nível diretivo deram-lhe esse apoio. Não conhecendo o Palmeiras por dentro, acredito que é dos clubes mais organizados na Série A, e este ano prova isso mesmo. O Palmeiras e o próprio Abel tinham entregado o título ao Botafogo e a verdade é que tiveram capacidade de ir atrás do objetivo. O grande mérito é do Abel, pela sua competência como treinador, mas acredito que as pessoas que o rodeiam tiveram o seu peso, porque viram nas suas ideias e exigência o caminho para ganhar títulos. Até nas viagens no Brasil o Palmeiras é diferenciado. Tem avião próprio, viaja quando quer, não há escalas, há uma recuperação que pode começar a ser feita na viagem que é impossível ser feita num voo comercial. O Palmeiras parece-me um clube completamente à parte do que é o futebol e organização no Brasil.
- Trabalho meritório foi também o de Pedro Caixinha, no Red Bull Bragantino, num projeto diferente do Palmeiras.
- Considero o trabalho do Pedro Caixinha ao nível do Abel ou até superior. O Red Bull é um clube que tem uma grande empresa por detrás, que aposta na juventude e está talhado para a formação, para vender, para o negócio. É um clube-empresa. Para mim, em grande parte da época, foi a equipa que melhor futebol jogou em termos de dinâmica a espírito. Foi a mais regular. O Pedro fez um trabalho excecional, meritório. Um sexto lugar para o Red Bull significou tanto para o Pedro como ser campeão para o Abel.
- Considera que a saída de Luís Castro teve influência na quebra posterior, embora não imediata, do Botafogo?
- Acredito que tenha tido alguma influência. Lá está, é uma questão de mentalidades. Recordo-me das entrevistas que li de alguns jogadores do Botafogo a assumir a responsabilidade pelo que aconteceu. Isso é muito fácil. Acredito que se criaram muitos egos com a saída do Luís Castro, que vinha de dois anos de trabalho difíceis. Esses egos quiseram todos assumir ‘sou eu, sou eu’, mas o futebol é um desporto coletivo. O Bruno Lage tentou unir aquilo, mas sem o tempo necessário.