Benfica: anatomia de um desastre anunciado
Roger Schmidt tem demonstrado dificuldades cada vez maiores na resolução dos problemas da equipa (Foto: Maciej Rogowski/IMAGO)

Benfica: anatomia de um desastre anunciado

NACIONAL05.03.202408:26

Da derrota estratégica que redundou numa goleada frente ao FC Porto no Dragão a um problema mais profundo; um dilema: melhores jogadores, pior equipa

Foi Sérgio Conceição quem ajudou a explicar, em detalhe, os 5-0 do FC Porto ao Benfica: perceber onde Rafa não podia ter bola e acelerar, impedir os movimentos da direita para dentro de Di María, iniciar uma construção mais recuada, com protagonismo dado a Pepê e Nico González, e explorar duas debilidades no rival — alas Di María e Kokçu com deficiências defensivas e a pressão «pouco agressiva» de Rafa e Tengsted, que permitiu aos dragões «acelerar para cima da linha adversária».

Pedro Bouças concorda. Na opinião do analista, treinador e comentador, o FC Porto encontrou a forma certa para «travar o Benfica». «Na primeira zona de pressão o FC Porto bloqueou as saídas do Benfica com marcação homem a homem. Não dava espaço na zona onde estava a bola e manteve a superioridade numérica mais atrás, com os quatro defesas e Varela», explicou a A BOLA, prosseguindo: «A construir, Sérgio Conceição criou um quadrado: Nico González e Varela atrás, Pepê e Evanilson na frente, Evanilson não foi ponta de lança. E por sua vez Galeno e Francisco Conceição estavam muito abertos para impedir as subidas de Aursnes e Morato na pressão. Assistiu-se, assim, durante todo o jogo, a uma superioridade no meio-campo de quatro para dois, João Mário e João Neves estavam sempre a correr para trás. Foi uma enorme vitória estratégica.»

Otamendi quis ser expulso! Encostado à esquerda, fora de posição, ele fez falta para se ir embora. É um sinal de descontentamento do que se está a passar. Isto é muito preocupante, vindo do líder

Jorge Castelo concorda com a leitura de Conceição, mas vai mais longe. O problema do Benfica não foi a inadaptação ao adversário, mas uma «perda de identidade» que está a corroer as fundações do projeto. «Os jogadores estão fora das ideias do treinador, isso é evidente. Não sou a favor de chicotadas, mas ele perdeu a comunicação com a equipa», aponta o treinador e formador, dando o exemplo do capitão Otamendi: «Ele quis ser expulso! Encostado à esquerda, fora de posição, ele fez falta para se ir embora. É um sinal de  descontentamento do que se está a passar. Isto é muito preocupante, vindo do líder.»

Castelo considera que as «experiências constantes» estão a prejudicar a equipa e a relação com o plantel. «Ele está a matar Morato, ele está ali a sofrer! Uma coisa é uma solução esporádica para um jogo específico, outra é impor um jogador numa posição sem rotinas. Não por acaso existe a especificidade de função», detalha.

Além da «vergonhosa saída de bola», as águias perderam, na ótica do antigo membro de várias equipas técnicas dos encarnados, aquilo em que eram «muito fortes» na época passada: a reação à perda da bola. E não é apenas devido à ausência de Gonçalo Ramos. «Ou é um problema de treino ou os jogadores deixaram de processar o que o treinador determina. Parece que Schmidt está perdido», diz Castelo, apontando uma característica «do currículo» do alemão: «O segundo ano nos clubes por onde passou foram sempre piores que o primeiro [ndr: na verdade, no que diz respeito aos resultados, a tendência até é ao contrário, com as segundas épocas em Salzburgo, Leverkusen, no Beijing Guoan e no PSV a serem melhores do que o primeiro]. É estranho, devia ser ao contrário porque as equipas estariam mais sistematizadas.»

Descrente das «chicotadas psicológicas», o também autor de várias obras sobre a modalidade critica o germânico pelas palavras após o dérbi com o Sporting para a Taça de Portugal: «Um treinador do Benfica não pode desconhecer as leis do jogo [sobre o golo anulado a Di María]. E não pode desculpar-se com arbitragens porque isso desresponsabiliza os seus jogadores.»

Uma questão de cultura

Voltando ao clássico: a aparente incapacidade do Benfica em mudar o rumo do jogo deve-se mais a uma questão cultural do comandante das águias do que a falta de visão. «Treinadores como Sérgio Conceição ou Rúben Amorim dão muita importância ao adversário, mas Roger Schmidt não. Ele mantém a sua ideia de jogo até ao fim, independentemente dos adversários. Ele já triunfou assim noutras vezes e por isso não vai mudar», afirma Pedro Bouças, apologista da «entrada de Marcos Leonardo».

Quando se traz um jogador como Di María tem de se contar com o o bom e o mau: os 15 golos e 15 assistências do argentino mas também a incapacidade defensiva

Mas independentemente do ponta de lança o mal é de outra dimensão: «Ao contratar determinados jogadores o Benfica abdicou de princípios para apostar mais na qualidade individual. Quando se traz um jogador como Di María tem de se contar com o bom e o mau: os 15 golos e 15 assistências do argentino mas também a incapacidade defensiva que impede a equipa de ser mais agressiva e ter mais bola.»

Jorge Castelo tem a síntese: «O Benfica tem melhores jogadores, mas pior equipa.»