ENTREVISTA A BOLA Beatriz Cameirão e companheira são mães: «É natural, é normal, pode acontecer»
Jogadora do Damaiense fala da aventura de ser atleta e ter tido gémeos; a necessidade de anunciar a gravidez da namorada no Instagram; as diferenças entre desporto masculino e feminino
- Beatriz, de onde surgiu o sonho de jogar futebol?
- Cresci numa família de futebolistas, todos os irmãos do meu pai eram futebolistas e quando era pequena ainda o meu pai jogava futebol. Ainda consegui ver alguns jogos antes de ele terminar a carreira. Depois também tenho um irmão mais velho que sempre jogou. Ou seja: toda a minha infância foi rodeada de futebol e de pessoas a jogar futebol, então automaticamente criei o bichinho e a paixão pelo desporto. Então pedi aos meus pais para me inscreverem, na altura, nas escolinhas, para iniciar a prática.
- Tendo o futebol feito sempre parte da vida da Beatriz, como foi entrar nesta indústria?
- Surgiu naturalmente, ou seja, eu fiz toda a minha formação com rapazes, na minha terra. Sou alentejana, de Reguengos de Monsaraz, e por isso toda a minha formação foi feita no Atlético Sport Clube. Depois, aos 17 anos, já não era permitido jogar mais com rapazes e recebi um convite do Benfica para vir para Lisboa. Vim ainda para a formação do Benfica, mas no segundo ano subi para a equipa principal. Desde então estou nesta indústria. É uma coisa natural e depois, com o tempo, vamo-nos habituando a este meio, a este contexto, a tudo que envolve.
- O desporto era encarado como um escape ou era mais uma diversão?
- Desde miúda que pratico desporto, desde miúda mesmo, desde que me lembro de assentar os pés no chão e equilibrar-me que me lembro de fazer exercício físico e desporto. Também sempre conjuguei muito o desporto, neste caso o futebol, com a música, mas a música acabava por ser mais uma diversão para mim, mais um hobby. O futebol sempre foi mais a sério, dediquei-me muito mais a esta área.
- Qual é que foi a sensação de ser considerada por duas vezes consecutivas a melhor jogadora do mês, em fevereiro e em março?
- Olha, foi um motivo de orgulho, acima de tudo porque foi um mês particularmente especial para mim, foi em fevereiro que nasceram os meus filhos, os gémeos, havia muito ruído à volta da situação e por isso foi muito importante receber estes dois prémios. Foi uma valorização do meu trabalho e não só, do trabalho de toda a equipa, porque sozinha era impossível. Isto é um desporto coletivo e não se ganham prémios sem ser com a ajuda de todos. Foi muito especial, importante e foi engraçado ser exatamente nesta altura, quando eles nasceram. Se calhar foi a estrelinha deles que me deu sorte.
Ser jogadora do mês foi um motivo de orgulho, acima de tudo porque foi em fevereiro que nasceram os meus filhos
- Considera que o facto de ser mulher tornou a sua carreira mais difícil?
- É assim, ser mulher no desporto é sempre mais complicado. Não diria que torna as coisas mais difíceis, mas as regalias das mulheres não são as mesmas dos homens e se calhar não têm de ser. O desporto feminino é diferente do desporto masculino e por isso não podemos exigir as mesmas coisas. Podemos pedir mais e melhor, lutar por mais valorização e mais investimento, mais marcas, mas claro que é diferente. Eu gosto de ser mulher e gosto particularmente do desporto feminino, porque acho que é especial, tem um brilho diferente. Não acho que seja mais difícil, mas ainda há grandes diferenças a nível da valorização da mulher. O futebol feminino está a crescer mesmo muito e acredito que daqui a uns anos a valorização será cada vez maior, os apoios serão também mais e por isso tem tudo para evoluir.
O desporto feminino é diferente do desporto masculino e por isso não podemos exigir as mesmas coisas
- Considera que o futebol feminino tem de tornar-se mais apelativo para atrair mais pessoas?
- Eu acho que o futebol feminino, na minha opinião, acaba por ser apelativo. Uma coisa que a mim me incomoda e chateia é as pessoas quererem comparar o futebol feminino com o masculino. O futebol feminino é um futebol bonito, porque tecnicamente e taticamente nós somos iguais aos homens. Não podem é exigir a mesma velocidade, a mesma capacidade física, isso não se pode exigir porque são géneros diferentes e nunca vamos estar no mesmo patamar. Agora, eu acho que é apelativo, acho que as pessoas têm de vir experimentar e quando experimentarem e sentirem como nós sentimos e olharem para nós enquanto mulheres a jogar futebol vão gostar. Precisamos, claro, que as pessoas venham mais aos estádios para isto evoluir.
- Quem é a Beatriz na equipa do Damaiense?
- Acho que cresci enquanto líder. Eu sou capitã desde o ano passado, mas cresci enquanto líder porque assim a época obrigou. Passámos por algumas dificuldades. Nem toda a gente está a par, mas tínhamos muito poucas jogadoras. Enquanto capitã, juntamente com as restantes capitãs, tivemos de segurar o balneário, agarrar o grupo, lutar por nós e acreditarmos, acima de tudo, que íamos lutar com o que tínhamos.
- Olhando para a parte mais pessoal: como foi planeada a gravidez da sua companheira?
- Esta gravidez foi muito conversada e muito planeada com a Carolina e depois naturalmente aconteceu. Queríamos muito ser mães, foi um desejo das duas, e por isso avançámos com tudo aquilo que é preciso fazer. Somos duas mulheres e, portanto, é necessária uma intervenção diferente.
- Quando é que sentiu o chamamento, ainda mais envolvendo duas pessoas do mesmo género?
- Queríamos muito ser mães, as duas. Conversámos e tudo surgiu naturalmente.
- Porque sentiu necessidade de fazer uma publicação no Instagram a anunciar a gravidez da Carolina?
- Para mostrar às pessoas que é natural, que é normal, que pode acontecer. No contexto em que eu sou jogadora de futebol acho que devíamos abrir, mostrar que é possível e abrir as mentes das pessoas. Gostamos de mostrar que é algo natural. Somos duas mães, podiam ser dois pais, podiam ser pai e mãe, é natural, é uma coisa que vai ter que ser natural e banal para as pessoas.
Sentimos a necessidade de publicar no Instagram para mostrar às pessoas que é natural, que é normal, que pode acontecer
- A aprovação das pessoas era necessária?
- Não, não era necessária a aprovação das pessoas porque somos nós, acima de tudo, que decidimos o que queremos fazer da nossa vida e não dependemos da opinião dos outros para tomar qualquer decisão. Simplesmente quisemos mostrar algo que nos aconteceu e que é bonito. Quisemos partilhar tal como qualquer outro casal poderia fazê-lo. Não foi pela aprovação de todos, nós não precisamos disso, o que importa é a família que nos rodeia estar connosco, de resto não tem grande importância e nem precisamos de aprovação de ninguém para fazermos aquilo que nos apetece fazer.
Não era necessária a aprovação das pessoas porque somos nós, acima de tudo, que decidimos o que queremos fazer da nossa vida
- O que é que foi mais difícil neste processo?
- O tratamento, o processo inicial, saber se realmente correu bem, sobretudo para a Carolina, se realmente estava grávida, se não estava, aquela fase inicial. Mas depois, a partir do momento em que se comprovou que realmente estava grávida e de gémeos, foi tudo natural. Mas, se calhar, o mais difícil foi mesmo receber, na primeira ecografia, a notícia de que eram gémeos. Foi um choque inicial, acho que para toda a gente que vai ter gémeos existe esse choque inicial, mas depois, naturalmente, as coisas conseguem-se.
- O que é que a Beatriz quer dizer às pessoas que conseguiram fazer aquilo que fez e às que ainda não conseguiram?
- Às que conseguiram dar uma força, porque nem todas as pessoas são iguais e há pessoas que, infelizmente, ainda têm o preconceito de vou fazer isto, não sei se vai ser aceite, lá está aquilo que tu estavas a falar, não sei se vai ser aceite, se calhar preciso da aprovação de uma amiga ou de um amigo, ou aquele vai-me julgar. Acho que o importante é dar o passo em frente e arriscar. A vida é nossa, a vida é só uma, por isso, se aquilo que vos faz feliz e aquilo que querem fazer é serem mães ou serem pais, façam-no porque é bonito, é uma aventura bonita.
- Como se chamam os bebés?
- O que nasceu em primeiro é o António e o segundo é o Frederico.
- Os nomes têm a ver com aquilo que foi conseguido ou eram nomes dos quais já gostavam?
- Por acaso fizemos uma lista de imensos nomes. Por acaso tínhamos uma lista maior de rapazes porque gostamos de mais nomes de rapazes. Se fossem meninas seria mais difícil, porque eu sou um bocadinho mais esquisita com nomes de meninas, mas nós fizemos ali uma lista e depois fomos escolhendo os nomes que mais gostávamos e selecionámos estes dois.
- Como é que a Beatriz e a Carolina se conheceram?
- Eu e a Carolina conhecemo-nos no Benfica. Ela estava a estagiar no Benfica, eu era jogadora e acabámos por nos conhecer no clube e foi logo... Amor à primeira vista não diria, não foi amor à primeira vista, mas falámos muito uma com a outra e acabámos por nos apaixonar e criar esta conexão bonita.
- Para terminar, falou-se que saiu do Benfica em junho de 2022 para prosseguir a vida académica. Ficou tudo bem resolvido com o clube ou existe ainda alguma mágoa?
- Não existe mágoa nenhuma com o clube, pelo contrário. Estou muito grata ao Benfica, gostei muito de lá estar. Mas saí não pela situação académica, já estava resolvida na altura, já tinha acabado a licenciatura. Saí porque tive que sair e tinha de ser e agora estou feliz, é o que interessa.