Ajax: explicações para a estrondosa queda dos 'Filhos dos Deuses'
A classificação da liga holandesa no teletexto das televisões neerlandesas (Foto: ANP/IMAGO)
Foto: IMAGO

Ajax: explicações para a estrondosa queda dos 'Filhos dos Deuses'

INTERNACIONAL31.10.202310:30

Último da liga holandesa; mercado não respondeu às saídas; perda de talento e referências, e academia estagnada; erros de casting para o banco; caos diretivo

O Ajax é o último classificado da liga holandesa. Aí está algo que muito provavelmente ninguém acharia que um dia poderia escrever. Campeão nacional há duas épocas, semifinalista da Liga dos Campeões em 2018-19 e finalista da Liga Europa em 2016-17, a quebra foi demasiado abrupta. E não se tratou apenas de uma ultrapassagem simples pelos principais rivais por culpa de uma má fase, a queda deu-se mesmo no abismo.

Os de Godenzonen (Filhos dos Deuses) não ganham desde 24 de agosto, quando disputaram a primeira mão de acesso à Liga Europa com o Ludogorets. Venceram então por 4-1. Perderam no segundo jogo, no Arena, por 1-0 e, a partir daí, nunca mais se encontraram: 0-0 na visita ao Fortuna, derrota por 3-1 em Enschede diante do Twente, empate caseiro a três golos com o Marselha na Liga Europa seguido de goleada sofrida por 4-0, no mesmo local, num clássico jogado em dois dias com o Feyenoord. Logo de seguida, um 1-1 em Atenas com o AEK e quatro desaires seguidos, respetivamente em casa com o AZ Alkmaar por 2-1, em Utrecht por 4-3, Brighton por 2-0 e Eindhoven, com o rival PSV, por 5-2. Tudo somado: três empates e sete derrotas. Números assustadores.

Curiosamente, o Ajax até começou a temporada a vencer. Diante do Heracles, somou a única vitória no campeonato, por 4-1. Desde essa partida até à Bulgária, registou-se uma igualdade a dois golos na deslocação ao terreno do Excelsior. 

Perda de referências, e mercado caro e deficitário

O emblema de Amesterdão teve uma receita em transferências de 156 milhões de euros, com destaque para as vendas de Mohammed Kudus (médio ofensivo, West Ham, 43 milhões de euros), Edson Álvarez (médio-defensivo, West Ham, 38M), Jurrien Timber (central, Arsenal, 40M), Calvin Bassey (central, Fulham, 22,50M) e Mohamed Daramy (extremo-direito, Stade Reims, 12M). Os laterais Owen Winjdal e Jorge Sánchez, e o extremo Francisco Conceição foram emprestados. Saiu muito talento.

No entanto, a perda mais dolorosa e traumática foi, sem dúvida, a do capitão Dusan Tadic, que, aos 34 anos e quando se esperava que terminasse a carreira no clube, pediu a rescisão para poder sair livre e assim assinar pelos turcos do Fenerbahçe, com a braçadeira a passar para o braço de Steven Bergwijn. O sérvio não terá ficado contente com a forma com o clube abordou o mercado e quis encerrar o seu ciclo em Amesterdão. Também os médios Davy Klaassen e Florian Grillitsch rumaram respetivamente ao Inter e ao Hoffenheim sem qualquer contrapartida. Ao talento, juntaram-se, portanto, referências perdidas. 

Para tentar compensar a sangria, os amsterdammers investiram pouco mais do que 100 milhões, sem que algum dos nomes entusiasmasse por aí além: Josip Sutalo (central, Dinamo Zagreb, 20,5 milhões), Georges Mikautadze (avançado-centro, Metz, 16M), Carlos Borges (extremo-esquerdo, Manchester City, 14M), Gastón Ávila (lateral-esquerdo, Antuérpia, 12,5M), Chuba Akpom (avançado-centro, Middlesbrough, 12,3M), Borna Sosa (lateral-esquerdo, Estugarda, 8M), Benjamin Tahirovic (médio-defensivo, Roma, 7,5M), Sivert Mannsverk (médio-defensivo, Molde, 6M), Diant Ramaj (guarda-redes, Eintracht Frankfurt, 5M), Anton Gaaei (lateral-direito, Viborg, 4,5M) e Jakov Medic (central, St. Pauli, 3M). O centrocampista Branco van den Boomen chegou livre, proveniente do Toulouse.

AZ Alkmaar festeja vitória no Arena de Amesterdão frente ao Ajax (Foto: ANP/IMAGO)

O deserto pós-Ten Hag

Desde a saída de Erik ten Hag para o Manchester United no verão de 2022, o Ajax já teve três treinadores, Alfred Schreuder, Johnny Heitinga e Maurice Steijn, e chega agora o quarto, John van’t Schip, um homem da casa e ex-selecionador grego, que terá uma missão extremamente complicada num conjunto completamente desmoralizado.

Apesar de um bom arranque, o primeiro falhou rotundamente depois de um bom trabalho no Club Brugge e Heitinga passou a interino até falhar o acesso direto à fase de grupos da Liga dos Campeões e a conquista da Taça. Já Steijn foi uma escolha muito pouco consensual, depois de uma trajetória discreta ao comando do Den Haag, VVV Venlo, Al Wahda, NAC Breda e Sparta Roterdão. Provou-se que não era o seu momento.

Um caos diretivo

A falta de rumo vislumbrou-se logo na cadeia de comando. O diretor para o futebol Marc Overmars saiu em fevereiro de 2022 por «algumas mensagens impróprias a empregadas», depois de ter sido importante na garantia de qualidade do plantel, com boas contratações e retenção de talento. Chegaram Gerry Hamstra e Kaas Jan Huntelaar para assumir as transferências, mas o primeiro deixou o clube em abril deste ano após alguns erros de casting, como a contratação de Lucas Ocampos ao Sevilha para colmatar a venda de Antony ao Manchester United. Em novembro de 2022, Maurits Hendricks deixou de ser membro do conselho de administração para assumir o papel de diretor desportivo, porém, como antigo guarda-redes de hóquei em campo, a sua especialidade está longe de ser o futebol.

Em julho, o presidente executivo Edwin van der Sar sofreu uma hemorragia cerebral durante as férias e, enquanto o seu lugar não é ocupado por Alex Kroes, diretor de desenvolvimento do AZ, o que acontecerá em março do próximo ano, Jan van Halst tem tomado as decisões mais importantes. Antigo futebolista e posteriormente comentador televisivo, acumulou vários cargos no Twente e no Ajax, e é agora o diretor executivo. Encontra-se neste momento no olho do furacão.

Por sua vez, o alemão Sven Mislintat, antigo scout e dirigente conhecido como Diamantenauge (olheiro de diamantes) com passado pelo Dortmund e pelo Estugarda, surgiu em cena em maio para ser diretor técnico e ajudar Van Halst na escolha de alvos, todavia uma investigação sobre a sua atividade no mercado levou a que a estratégia fosse duramente criticada. Responsável por 11 vendas e 13 contratações, acabou por ser vítima da goleada sofrida no Arena aos pés do Feyenoord, jogo em que a multidão reagiu em fúria e que teve de ser retomado no dia seguinte. Foi despedido. Para trás, ficaram os tais 100 milhões (mal) gastos.

Jan van Halst e Sven Mislintat durante o jogo com o Twente (da esquerda para a direita, ao centro) (Foto: Pro Shots/IMAGO)

O médio e o curto prazo

Não só a política desportiva falhou no verão, como também a academia não apresenta tanto talento com antes. O talentoso central esquerdino Jorrel Hato, de apenas 17 anos, é aquele que mais vezes tem sido aposta e mais promete, mas não chega. É por aí que, tal como várias vezes no passado, o Ajax procura reestruturar-se: os departamentos de ciência desportiva e análise de dados estão a ser melhorados, e a nível diretivo foi ainda criado um programa de formação de talento de dois anos, em que ex-jogadores trabalham nas áreas comercial, legal e de comunicação.

Quatro vezes campeão da Europa, o emblema de Amesterdão tenta reagir ao momento mais adverso da sua história. E, se depois de tantos erros cometidos, há algum discernimento para avançar para soluções que já deram certo, há um curto prazo que preocupa e muito todos os adeptos, e paira sobre Van’t Schip. Embora com jogos em atraso e muito tempo para recuperar, o Ajax está mesmo no último lugar da liga. Impensável.