Espaço Universidade Risco e acaso (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 43)
O desporto comporta o factor risco. Tal como comporta o factor acaso. Sendo uma actividade humana, estes dois factores estão e estarão sempre presentes no mesmo. O necessário é que nos compenetremos disso porque só compreenderemos o desporto se reconhecermos a existência do risco e do acaso no mesmo – e sabermos onde e quando nele interferem.
O desporto foi atingido por mais uma morte: factor risco – neste caso, risco máximo. Jason Dupasquier, piloto luso-suíço de apenas 19 anos, foi a vítima em MotoGP – a 26ª vítima nesta modalidade (considerando-se MotoGP uma modalidade desportiva). Morte por acidente, tal como tem acontecido em inúmeras outras modalidades (e separamos já aqui estas mortes dos casos de morte súbita).
Se há modalidades em que o factor risco tem um maior peso – o boxe, onde entre 1945 e 1995 morreram cerca de 500 pugilistas, e as Mixed Martial Arts, em que de 1993 até 2016 morreram 14 competidores, ou a Fórmula Um (em 40 anos, de 1954 a 1994, ano da morte de Ayrton Senna, morreram pelo menos 41 pilotos) – outras há onde nem se equaciona tal… mas no entanto acontecem nas mesmas mortes por acidente: ciclismo, esgrima, desportos na neve, hipismo, futebol, alpinismo, basquetebol e surf entre outras.
Mas não se pense que quando falamos de risco estamos somente a focar esse bem supremo que é a vida, ou que só abordamos a questão em termos de se colocar em perigo a saúde. Risco é fazer uma opção sem se ter a certeza do resultado e depois ter de se viver com ela. Falamos de risco quando conseguimos traduzir uma incerteza que se pode expressar por um número recorrendo a dados empíricos. E sendo o desporto um palco de incertezas, inúmeras vezes estas são controladas pelo acaso.
Na Taça das Confederações de 2017, competição intercontinental realizada na Rússia, no jogo das meias-finais entre Portugal e o Chile chega-se ao final deste sem golos. Parte-se para o prolongamento e aos 119 minutos Arturo Vidal remata a bola ao poste e na recarga Martín Rodríguez acerta na trave. “Sorte” para Rui Patrício, “azar” para os chilenos… mas se fosse na baliza contrária seria “azar“ para a selecção portuguesa... Conveniente não esquecermos que os ferros também fazem parte do jogo.
Nas grandes penalidades (0-3 a favor do Chile) “azar” para Quaresma, Moutinho e Nani na marcação das mesmas e “sorte” para o guarda-redes chileno Claudio Bravo… No final do jogo Cédric declara que nos penalties existe sempre “alguma sorte”. Errado!!! O que existe é falta – ou não – de técnica do marcador (ou de concentração… ou de outra coisa qualquer) e mérito – ou não, ou outra coisa qualquer – do guarda-redes. O que existe é acaso! Bernardo Silva, sintonizado pelo mesmo diapasão, afirma também erradamente que “os penalties estão relacionados com a sorte”. A “sorte” ou o “azar”, termos banalizados e introduzidos de modo frequente no nosso vocabulário, são termos inventados pelo homem para justificar os sucessos ou os fracassos em que o acaso é determinante. O que prova a necessidade humana de constante atribuição causal…
No futebol americano cerca de 1,5 milhões de jovens praticam esta modalidade e todos os anos ocorrem, em média, 30 acidentes que resultam em morte, invalidez parcial ou total e danos cerebrais irreversíveis. Segundo uma estimativa de 1993, a duração média da carreira destes jogadores está estimada em 3,2 anos (1). Quanto de risco e quanto de acaso nestas situações?
O desportista, o competidor, é então apresentado à sociedade como um mártir e não como herói. Foi inculcado nele o fazer sacrifícios pelo “jogo”, o esforçar-se ao máximo para alcançar pódios tal como atingir prémios e distinções, o aceitar riscos e jogar ou competir através da dor e o aceitar não haver limites na perseguição dos objectivos mesmo que utópicos, porque, para além da vitória ou do ganho pecuniário, é lapidado na crença de que ser um “verdadeiro atleta” significa assumir riscos, fazer sacrifícios e jogar o preço de ser tudo o que se poderá ser.
A mercantilização do desporto transformou a sua matriz inicial e tornou-o numa actividade em que os fins parecem justificar os meios. Como nos dizem Miguel Nery e Carlos Neto (2), “o aumento de competitividade, associado à determinação económica dos objectivos, contribuiu para tornar a acção desportiva incompatível com a ética e fair play nos níveis mais elevados de competição”, o que fez aumentar ainda mais o risco e o acaso no desporto.
(1) Melo, Afonso & Azevedo, Rogério, 2004. “Doping : a triste vida do super-homem”. Lisboa: Dom Quixote.
(2) Nery, M. & Neto, C., 2014. “Bullying como forma de violência no desporto”. In Michel Renaud (Coord.), “Ética e Valores no Desporto” pp. 155-172. Porto: Afrontamento.
Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 5º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.