Espaço Universidade O dormitório (artigo de José Antunes de Sousa, 107)
Para tudo na vida há peso e medida. - tanto para a virtude como para o defeito. E para o insulto também. Gradua-o não só o autor do ultraje, mas também o seu destinatário: acusar, por exemplo, alguém de estultícia, se esse alguém for poucochinho, se for parvo (parvus:pequeno), corre-se o risco de que o interprete como velado elogio. Mas é mesmo parvoíce.
Como acontece com grande parte dos jogadores de futebol que acreditam fervorosamente que a forma mais eficaz de ganhar um jogo é jogá-lo a partir da posição de deitado: grande estupidez (uma parvoíce mais crescida).
Desde logo, é preciso recorrer a um contexto de microfísica para lobrigar um toque que, sendo-o, tenha sido mecanicamente suficiente para provocar o alarmante derrube - a ponto de, em intermináveis e tautológicos programas de televisão, se consumirem horas à volta desta intrigante questão: tocou ou não tocou?
E, claro, acaba sempre da mesma maneira - exactamente como começara: para uns tocou, para outros obviamente que não tocou.
É falácia dramática pretender fomentar e expandir um jogo cuja substância parece esgotar-se na inconsequente discussão à volta daquilo que flagrantemente a nega: o futebol é essencialmente contacto, pelo que é pura estultícia interrompê-lo, paralisá-lo, ao mínimo arremedo de um hipotético toque. E se for na cara (ou nos arredores)? Ai, ai! Tragédia.
Com tanta gente no chão, na fofice de uma relva bem cuidada, aquilo, mais do que um campo, parece, antes, um dormitório (talvez de refugiados do Afeganistão): ao mínimo abanão, jogam-se acrobaticamente para o relvado, ao mesmo tempo que soltam gritos tonitruantes, visando comover o coração do árbitro que vai na fita dos palhaços, fazendo o triste papel de trouxa. E, depois de se contorcerem devidamente, para ali ficam espojados naquela posição fetal - a mais cómoda para se dormir.
Resumindo, sem pinga de ironia: metade do tempo de duração oficial do jogo passam-na deitados, perante o olhar complacente e condoído de árbitros, treinadores, terapeutas - e directores, claro.
Enquanto, lá em casa, já não há quem aguente tanta palhaçada e tão entediante pasmaceira. E bem sabemos como é contagioso o sono: às tantas, boceja-se e dormita-se nas bancadas e dorme-se a sono solto ( quiçá com pesadelos) no sofá da sala.
Sim, o futebol português (e não só) sofre da doença do sono.
Precisa-se urgentemente de um ajudante Burrrinhas: era o meu sargento-ajudante em Lanceiros2. De varapau em punho, corria a caserna de fio a pavio e, à paulada, fazia os mandriões saltar da cama para se aprontarem para as tarefas da ordem.
Primeiro: ele era Burrinhas (grande pessoa!), mas de burro é que não tinha nada.
Segundo e por fim: os mandriões não são só os jogadores.
O futebol está a precisar de um duche de água gelada.
José Antunes de Sousa
Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa