Vergonha de si próprio

OPINIÃO20.02.202001:05

DE todas as observações, análises ou críticas sobre o caso Marega, aquela que mais retive foi talvez a mais básica de todas porque resume, de forma  simples e cristalina, o que está em causa. «As pessoas têm de voltar a sentir vergonha dos seus comportamentos», disse o sociólogo Rui Pena Pires, na RTP3, abordando a perda dos filtros que têm permitido a escalada da violência (física e verbal) no futebol. O problema não é apenas de índole racista, é muito maior que isso: nos últimos largos anos criou-se a ideia de que o futebol português é uma espécie de discoteca mal frequentada onde se pode partir copos, vociferar contra o DJ e maltratar o empregado de balcão, mesmo que a música seja boa.
Apesar dos sinais, a causa nunca entrou devidamente na agenda política. De todos os partidos com assento parlamentar, apenas dois abordaram o tema nos respetivos programas eleitorais: o PS comprometeu-se a «promover a cooperação entre autoridades, agentes desportivos e cidadãos, com vista a erradicar comportamentos e atitudes violentas, de racismo, xenofobia e intolerância em todos os contextos de prática desportiva, do desporto de base ao desporto de alto rendimento»; o Bloco de Esquerda pediu «maior fiscalização por parte das entidades competentes ao fenómeno dos grupos organizados de adeptos e reforçando, para isso, o Instituto Português do Desporto e da Juventude». As restantes forças políticas ou se focaram no desporto de uma forma mais abrangente (PSD e CDU) ou nem sequer tocaram no assunto (CDS, Iniciativa Liberal, PAN, Livre e CHEGA).

PERCEBER como chegámos aqui é urgente. Haverá motivos culturais, sociais, económicos e políticos que extravasam o perímetro do futebol, mas o futebol como entidade abstrata não pode nem se deve demitir. Isto é, os clubes. Porque são os clubes que elaboram os próprios regulamentos de disciplina e arbitragem desde que isso ficou plasmado na Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. É dos clubes a culpa por atos de violência (dos vários tipos) passarem por entre os pingos da chuva ou serem punidos com multas irrisórias ou anedóticas porque os regulamentos têm vazios incompreensíveis (ou talvez não...).
Em julho de 2017, uma proposta do PSD (mais tarde retirada) de alterar a lei, devolvendo à federação a elaboração e aprovação dos regulamentos de disciplina e arbitragem motivou uma dura reação do presidente da Liga, defendendo Pedro Proença que o futebol português já provou ser capaz de se autorregular. É uma questão discutível e sensível mas os múltiplos acontecimentos dos últimos anos mostram que os clubes/SAD ainda não conseguem impor a si próprios sanções duras. Se o sentimento de impunidade fora das bancadas cresceu até ultrapassar os limites da vergonha em muito se deve aos dirigentes como um todo, legisladores em causa própria.
Eis um desafio: conseguirão os presidentes dos clubes profissionais de futebol em Portugal dar os passos necessários visando uma justiça mais rápida e um quadro legal mais duro para quem tem salários em atraso, para quem fomenta o terrorismo comunicacional, para quem apoia, de forma mais ou menos oficial, grupos de adeptos que ferem a paz social e as história desses mesmos clubes?

Omérito da reação de  Marega foi, esperamos, o de marcar o desejo de regresso a uma decência perdida. A ética não se cria nem cresce por decreto. Quando os adeptos se portam de forma animalesca não deveria ser necessário vir uma entidade terceira a condená-los; a maior crítica deveria surgir dos dirigentes desses mesmos clubes. Quando adeptos da Juventus exibiram tarjas ofensivas sobre a tragédia de Superga num dérbi contra o Torino a primeira reação de repúdio partiu do presidente bianconero, Andrea Agnelli; o mesmo poderíamos dizer das suspensões para a vida que muitos clubes decretaram a adeptos violentos ou racistas (Villarreal, West Ham, Chelsea ou Everton). Quando isso acontecer em Portugal talvez se abra uma janela de esperança; talvez todos voltem a sentir vergonha de si próprios.