Uma história para contar
O Benfica não é hoje o poder vigente. Tem por isso de ser o mais feroz opositor a quem lá está. Só nos resta uma opção: teremos que ser muito melhores. Vamos a isso
Q UE saudades de ver a bola a rolar. Um simples jogo-treino contra o Reading, ainda em trajes secundários, foi o suficiente para nos relembrar que o futebol não é, afinal, esta sucessão infindável de diretos em aeroportos e cidades sul-americanas, à espera do próximo reforço.
Corro o risco de tirar conclusões precipitadas e direi que este primeiro jogo já revelou duas coisas diferentes: uma pressa muito grande de recuperar a posse de bola e de a recuperar no meio-campo adversário, e uma vontade grande de chegar rapidamente à baliza adversária. É um facto que poucas vezes os jogadores mostraram níveis de coordenação motora exatamente como os que serão idealizados por Roger Schmidt, mas parece estar ali a semente de um futebol diferente, tal foi a rapidez com que se identificou.
Gostei especialmente de voltar a ver o Florentino a ocupar uma posição essencial que permitiu ao meio-campo exercer muita da pressão bem sucedida ao longo do jogo. Foi refrescante ver alguém tão ágil, equilibrado e esforçado em plena vaga de calor, mas, mais do que isso, é bom ver um jogador da casa voltar a uma posição de onde não devia ter saído. Não é a primeira vez que um atleta da formação do Benfica regressa para fazer a pré-época e, assim que calça, parece um outro jogador, isto até nos lembrarmos que este mesmo Florentino, o que tem visto a sua carreira ser desperdiçada um empréstimo após o outro, já era este antes de o pôrem a fazer um inter-rail com passagens pelo Mónaco e depois pelo Getafe. Vi algumas teorias sobre o traquejo que as passagens por outros campeonatos deram ao nosso centro-campista, mas este é exatamente o mesmo Florentino que já cá estava. Esperemos que não se desfaçam dele novamente.
Apesar de ter sido o primeiro jogo da pré-época, o primeiro grande golo da época já tinha sido apontado por Henrique Araújo, alguns dias antes, na gala da Liga Portugal. Esta é uma daquelas cerimónias para a qual toda a gente segue aperaltada honrando mais uma vez os versos de Alexandre O’Neill: país engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano. Esteve bem o miúdo Araújo, ao aceitar o prémio de melhor Jovem da Liga 2 sem grandes palavras a não ser para o seu clube e respetivos adeptos, e, como se não bastasse a vantagem ao intervalo, esteve bem Lourenço Coelho, quando, ao invés de aceitar acriticamente a patetice de um prémio Fair Play atribuído ao Benfica, avisou que na próxima época não seremos candidatos a esse prémio. Reparem como tudo isto aconteceu com duas intervenções simples, cirúrgicas e oportunas, sem que fosse preciso dirigir mais uma newsletter cansada a quem já não tem paciência para as ler. São golos metafóricos, mas contam, em especial depois de uma época em que os benfiquistas sentiram que não tinham voz.
Voltando à gala da Liga Portugal: que uma Liga empobrecida, com clubes a mais e adeptos a menos, que trata o espectador da bancada como se fosse um mero figurante, obrigando muitos a viagens impensáveis não fosse o seu amor irracional pelo clube; que uma Liga com o mais baixo tempo útil das principais ligas europeias e que nada fez para contrariar essa tendência, uma Liga onde os episódios de racismo e violência se vão acumulando para dizer ao delator que pode continuar, uma Liga que continua a não garantir VAR para as duas primeiras divisões, e que nada faz para modernizar o protocolo do VAR por forma a torná-lo sério e transparente, enfim, que esta Liga sinta necessidade de embarcar numa celebração auto-congratulatória de passadeira vermelha, é já de si um pouco triste. Salvou-se a justa escolha do Darwin para melhor jogador do campeonato, e pouco mais.
Para que se perceba melhor a pobreza das coisas, a mesma em que iremos continuar por mais alguns valentes anos, esta é a mesma entidade cujo presidente Pedro Proença, para enquadrar o patrocínio da Liga ao Rock in Rio, explica, e passo a citar, que se trata de «um investimento num novo sector no qual nos interessa muito entrar, com muita gente jovem, pelo que foi um passo muito bem conseguido. Temos a cara de uma Liga nova, com uma nova roupagem e postura, pelo que se exige a capacidade de entrar em campos nos quais ainda não tínhamos capacidade (…) tivemos a necessidade de, neste processo pós-pandémico, recuperar os adeptos para junto de nós e voltar a ter estádios cheios, algo que não aconteceu durante metade da época passada, e temos a plena convicção de que com a aposta nesta nova geração vamos dar passos importantes nesse sentido». Será que Pedro Proença acredita numa palavra do que disse?
Podia terminar o texto com uma palavra de desânimo e perplexidade após esta declaração que apresenta uma estratégia de marketing em que se patrocina o Rock in Rio com o objetivo de voltar a encher os estádios. Podia terminar aproveitando para devolver ao presidente da Liga as palavras inadequadas com que qualificou as declarações dos representantes do Benfica, ao dizer que «algumas pessoas têm maior ou menor facilidade em se expressar», uma opinião aliás indigna do presidente de um organismo que tutela provas desportivas nacionais. Podia terminar perguntando quando é que vamos ter um quadro competitivo nacional organizado de forma séria, transparente, competente e respeitadora dos adeptos. Podia perguntar ao presidente da Liga porque é que num dia fala na necessidade de um espectáculo mais adequado ao regresso das famílias ao estádio, mas é incapaz de condenar publicamente a postura de violência verbal institucionalizada por atletas e dirigentes, como a que vimos há poucas semanas nos jogadores do Futebol Clube do Porto. Podia terminar de muitas formas, mas seriam perguntas meramente retóricas às quais o presidente da Liga não responderá, talvez por entender que quem o critica tem maior dificuldade em se expressar.
Termino antes dizendo o seguinte: todas as épocas desportivas precisam de uma narrativa, precisam de vilões e de heróis, precisam do reconhecimento da valia adversária e também da capacidade de antecipar todas as rasteiras e armadilhas que nos colocam pela frente. Todas as épocas contam uma história e o Benfica tem aqui a sua narrativa. Esta Liga em noite de gala, cheia de problemas que todos veem mas ninguém quer resolver, estendeu-nos uma passadeira vermelha para enfrentarmos algo que Lourenço Coelho referiu na sua declaração enquanto segurava o prémio Fair Play. É verdade. A competência nem sempre chega, porque choca de frente com a incompetência dos demais. Mas não podemos dizer que não sabemos ao que vamos, e é bom que já tenhamos tornado isso claro. O Benfica não é hoje o poder vigente. Tem por isso de ser o mais feroz opositor a quem lá está. É sobre isso que deverá rezar a história da próxima época. Só nos resta uma opção: teremos que ser muito melhores. Vamos a isso.