Uma equipa com pressa é uma coisa linda de se ver
Schmidt, além de compreender aquela que eu considero ser a identidade do Benfica (vencer), deu-lhe novo alento: enorme pressa de lá chegar
HÁ uns anos tive uma discussão em que se debatia uma questão fundamental: qual é a identidade do Benfica? Uns diziam que era forjada pela sua história recheada de deuses e heróis, outros argumentavam que se relacionava com a grandeza de um clube maior do que o país em que nasceu, outros defendiam que vinha da mística, aquela interseção espiritual entre um estádio cheio a cantar e um adversário encostado às cordas. Eu, que concordava e concordo com todos os participantes nesse debate, resumi isto a uma só coisa: a identidade do Benfica é ganhar. Sinceramente aquilo foi um jantar bem regado e não me lembro se a discussão chegou a um consenso, mas de uma coisa tenho a certeza. Ninguém contesta que é bom ver o Benfica ganhar tantas vezes como tem ganho esta época, e fazer disso um dos seus principais traços identitários, senão o mais vincado de todos. De igual forma, ninguém contestará que, sem se ganhar muitas vezes, a tal identidade, seja lá qual for, sofre alguma erosão.
Este ano não se trata só de ganhar, mas também do modo como temos vencido. Há uma estranha ordem nas coisas. Tudo parece estranhamente parte de um plano. Digo que é estranho porque não estou habituado a ver tanta competência, durante tanto tempo, resistir a todo e qualquer adversário. Não sei como será no dia em que estivermos a levar 3 secos de alguém e eu vir Roger Schmidt com o mesmo ar de sempre, impávido e sereno, olhar compenetrado, a acompanhar o jogo quase sem gesticular ou falar com os jogadores, como se comunicasse por telepatia. Sei que hoje parece preparar a equipa melhor do que qualquer outro treinador em Portugal.
Cada jogador parece compreender, aceitar e desempenhar com entusiasmo o seu papel no plantel, dentro e fora de campo. O trabalho nunca é apenas técnico e tático, porque nunca vi tantos jogadores do Benfica tão felizes em campo. Dos mais utilizados aos menos talentosos, ninguém foi deixado para trás, e todos têm feito a sua parte, demonstrando foco, ambição, garra e humildade. O momento chegará em que alguém se vai queixar de jogar menos ou pedir um salário mais elevado, mas por agora toda a gente parece respeitar a missão e seguir em frente.
Benfica de Roger Schmidt «enche estádios, enche as medidas, enche os cofres, e tem levado o Benfica ao mundo inteiro»
Há uma coisa engraçada que se diz muito hoje sobre a equipa do Benfica. Fala-se da nossa capacidade de jogar sem bola, ou da chamada reação à perda. É um termo muito curioso, porque apesar de servir para descrever as ações de uma equipa quando perde a posse da bola, neste caso parece ser muito mais do que isso. É como se a equipa reagisse não à perda de bola naquele momento, mas a todas as perdas de bola dos últimos anos, consciente de que o Benfica não pode terminar mais uma época sem títulos. E não reage apenas com a leitura tática que permite cobrir devidamente os espaços. Chega quase sempre primeiro à bola. Há uma pressa boa em tudo o que se faz. Este Benfica nunca tem tempo a perder.
A urgência em recuperar a posse da bola só encontra paralelo naquilo que a equipa faz quando tem a bola. Jonathan Soriano, que foi treinado por Roger Schmidt na Áustria e na China, explicava há uns dias uma ideia simples mas muito poderosa que guia as equipas do alemão. Quando a equipa recupera a bola, tem que chegar à área contrária em menos de 10 segundos. É formidável. Agora dou por mim a contar os segundos de cada vez que temos a bola. Não vou dizer que são sempre menos de 10 segundos, mas o princípio está lá. É mesmo isto.
Esta pressa não deixa nenhum benfiquista indiferente. Enche estádios, enche as medidas, enche os cofres, e tem levado o Benfica ao mundo inteiro. Mas quando penso na pressa não me refiro apenas à tal ideia de jogo que se traduz em futebol atrativo e vertiginoso. Essa apaixona, sem dúvida, mas pertence ao domínio dos factos. Há métricas que o demonstram e analistas que dedicarão anos de vida a perscrutar este Benfica, porque é uma equipa que vale a pena tentar imitar. Não. É um pouco maior do que isso. A urgência constatada pelo Goalpoint alimenta também a nossa imaginação. A pressa em chegar ao primeiro golo, a pressa em recuperar a posse da bola, a pressa em voltar a chegar à baliza adversária, tudo isto são sintomas de uma coisa maior: a pressa em ver onde tudo isto vai dar. Nenhum de nós adeptos seria capaz de controlar tanta ânsia ou ansiedade se pisasse o relvado. Tropeçaríamos de ternura pelo Benfica, até nos devolverem à bancada. E a maioria das equipas do Benfica ao longo dos anos lidou mal com isso. Esta parece mesmo diferente. Feita de outro material. Troca a ansiedade por miúdos, ou seja, por golos, e exibe uma uma pressa existencial de celebrar os títulos pelos quais todos ansiamos, de chegar lá o mais rapidamente possível.
Bem sei que o clube nasceu em 1904, mas uma identidade deve ser um contínuo processo de conservação e, não menos importante, de construção. Não sei o que nos reserva o Benfica no resto desta época que nunca mais volta, mas sei uma coisa. Não somos os mesmos depois desta equipa que vimos nos primeiros 25 jogos oficiais. Roger Schmidt conseguiu uma coisa impressionante: para além de compreender aquela que eu considero ser a identidade do Benfica - vencer -, deu-lhe um novo alento: uma enorme pressa de lá chegar. Essa é uma ideia que move montanhas, e uma ideia que há muito não nos era transmitida de forma tão clara por um treinador do Benfica. Este clube existe para vencer. Que celebremos hoje, quando vemos a máxima consubstanciada de forma tão digna e capaz, e a saibamos exigir amanhã, sem transigir com a falta de ambição.
Por último, que esta pressa e urgência em viver dias felizes seja interrompida por este Mundial de Futebol no Catar é um crime contra a humanidade. Que se lixe o Tribunal de Haia. O Tribunal da Luz concorda comigo. Ao plantel e a todos os funcionários do clube responsáveis pelo que temos visto: obrigado pelo que fizeram até agora. Voltem depressa, e com a mesma pressa.