Uma crónica de protesto
A última assembleia geral do Benfica precisava do dobro da participação para se aproximar de meio por cento do total de sócios registados no clube (337 mil)
N UM universo de mais de 300 mil associados, e quando mais de doze mil estão em lista de espera para obterem, sem prazo, um lugar no Estádio da Luz que lhes permita assistirem aos jogos da equipa de futebol na próxima época, na última assembleia geral, realizada na sexta-feira, apenas 804 votaram o orçamento e plano de atividades para o exercício 2023/2024, aprovado por larga maioria (692).
Contas simples, o futuro próximo do maior clube português, com milhões de adeptos espalhados pelo mundo, foi sufragado por uma assembleia que precisava do dobro da participação para se aproximar de meio por cento do total de sócios registados (337 mil).
Dir-me-ão que se trata de uma situação normal, embora tradutora da dessincronização entre estas assembleias e a realidade, por não acompanharem o crescimento das próprias instituições nem a agilidade de que elas precisam para responderem bem e depressa aos desafios que lhes são colocados, pelo contrário. No caso do Benfica, expõem-no perigosamente a correntes de ar provocadas por minorias organizadas e frequentadoras assíduas dessas reuniões magnas, por verem nelas oportunidades privilegiadas para espalharem divisões, promoverem bloqueios e assumirem-se como movimentos de influência, alguns conhecidos e que até o próprio Rui Costa terá acolhido para aliviar o seu caminho de obstáculos mais ou menos imprevistos.
O aliado mais importante do presidente do Benfica é o sócio anónimo, aquele que o elegeu por maioria retumbante (84,48 por cento) na assembleia mais participada da história do clube (40.085 votantes) e que compareceu em massa para proteger o clube de oportunismos e malabarismos que se perfilaram numa tentativa de tomada do poder. Tentaram, sim, mas todos juntos valeram risíveis doze por cento. Sabem que não fazem parte da solução, mas vão fazer parte do problema assim que a ocasião surgir.
Dada a proximidade de anunciada revisão estatutária, esta assembleia parece-me um bom exemplo do que não deve acontecer num clube com a grandeza do Benfica.
A vontade de acompanhar a vida do clube e conhecer o que lá se passa não se compadece com medidas apressadas, tomadas não sei por quem, e que colidem com o espírito livre e verdadeiramente democrático que sempre foi a imagem do emblema da águia até à altura em que resolveu cavalgar a mesma onda de outros, cada qual com os seus motivos mas nenhum com a dimensão da águia nem com o inusitado interesse mediático que tudo o que está associado ao seu nome suscita, em Portugal e no Mundo.
A S assembleias do Benfica acolhem, maioritariamente, os sócios residentes em Lisboa e nas regiões envolventes. Compreende-se que assim seja, mas não é justo, razão pela qual assume especial importância o papel dos jornalistas em informarem, com a isenção e o rigor profissional que a estão obrigados, toda a nação encarnada sobre o que se discute e se aprova ou reprova no espaço fechado de um pavilhão.
Posso dizer que, profissionalmente, acompanhei no local dezenas de assembleias, algumas bem quentes, muito quentes, noites dentro, e nunca tive problemas, nem senti qualquer tipo de pressão.
Há quem argumente que nessa altura era diferente. Pois era, e depois? Grave, sim, é esconder dos mais de 300 mil sócios e não sei quantos milhões de adeptos o que se diz e o que se vota, sem necessidade de recorrer a infiltrados, a intermediários de notícias ou a canais pouco credíveis que se prestam ao papel de corneteiros, com esquemas bem urdidos, tal como se observou naquele período agitado de transição, desde a saída de Luís Filipe Vieira até à legitimação de Rui Costa como presidente através de eleições, em que até diretos manhosos se engendraram.
O Benfica tem de voltar a ser um clube de todos e para todos, de modo a diluir insinuações pouco recomendáveis por parte de grupos e movimentos afins, e isso só se consegue através de uma política de comunicação livre e responsável, com regras de funcionamento muito claras.
É a imagem que retenho de anos de trabalho no pavilhão principal do antigo Estádio da Luz, cheio. Mosquitos por cordas houve, vários e grossos em diferentes épocas, mas nada ficava por esclarecer e mesmo que a madrugada fosse quase dia, como aconteceu, ninguém arredava pé sem que antes o presidente da Mesa pedisse aos desavindos que se abraçassem e todos os presentes, de pé, gritassem vivas ao Benfica.
Era assim, agora não sei, nem tenho como saber, por isso fico-me por esta crónica de protesto.
Era assim, a revelação espontânea do amor sincero pelo clube. Agora, com as portas fechadas aos jornalistas, tudo vai desembocar no lado mau das redes sociais.