Um sorriso em que apetece confiar
Dirão os mais otimistas que não é possível ver mais por enquanto e que tudo vai correr bem, mas a vida do benfiquista mais cético não é fácil
C OMECEMOS pelo início. Eu bem tentei desligar-me do defeso, mas olhei para a televisão e não consegui. O grande reforço da nova época é, até agora, o sorriso de Roger Schmidt. Eu tinha prometido a mim mesmo que só acordava quando começarem os jogos de preparação, mas não consegui. E não é ironia. É mesmo o gosto em ver uma figura desempoeirada e amigável a chegar a um novo local de trabalho, com menos vícios e mais humildade. O alemão parece genuinamente feliz por estar no Benfica, assim como a equipa técnica dele. Não vi ponta de sorriso amarelo no seu primeiro retrato para a posteridade. A sensação clara é de que Schmidt sonhava com um clube como o Benfica. Depois de um treinador e de um presidente que fizeram o Benfica sentir-se tão mal amado, essa primeira impressão não é um detalhe. E também não me parece só marketing (apesar de ajudar a vender o Red Pass, como se quer).
Élegítimo pensar que, depois de uma série de clubes respeitáveis em outros países, chegar ao Benfica seja um passo fundamental na carreira de Schmidt. É verdade que ainda agora começámos a pré-época e, num clube sem muito tempo a perder com abstrações bem intencionadas do estilo ano zero, este novo começo reúne ingredientes para vir a correr muito bem ou espetacularmente mal. Por agora apetece-me aplaudir a refrescante novidade de ver no meu treinador alguém que parece querer tanto o Benfica quanto os benfiquistas desejam o seu sucesso. A primeira conferência de imprensa podia ter sido uma perda de tempo, mas não, foram 14 minutos bem empregues. Simpatia quanto baste, disponibilidade para responder de forma clara a tudo o que ouvi ser-lhe perguntado, indisponibilidade para entrar em guerras verbais ou para ignorar o mérito dos adversários do Benfica. Em suma, apetece torcer por este novo treinador.
Oúnico problema da conferência de imprensa, aliás, foi o embate com a realidade atual do plantel. Gotze teria sido bom mas não deu, Horta tem tudo para ser bom mas ainda não sabemos se é nosso, e Enzo será muito bom quando eventualmente cá chegar. O sorriso de Schmidt só peca pelo excesso de honestidade. Por muito que o próprio explique que há uma pré-época para descobrir talento, talvez até onde menos se espera, o certo é que as incógnitas são mais do que muitas.
T ERMINOU a parte mais bem disposta da crónica desta semana. A partir daqui todo eu sou dúvidas, mais ou menos desde que vi um post do Benfica nas redes sociais a ilustrar o primeiro dia da época 2022/2023 com meia dúzia de caras que não me parecem ser a garantia de que precisamos. Espero que os visados não me interpretem mal. Por exemplo, eu desejo a maior das felicidades e muito sucesso ao Chiquinho, e gostei muito de o ver no Moreirense de há umas épocas. No entanto, depois de o termos comprado duas vezes e de não ter resultado, é difícil para um benfiquista entusiasmar-se com a sua chegada ao Seixal numa manhã de junho.
M AS vamos por partes. Vlachodimos, Helton Leite e Samuel Soares. O primeiro passou os últimos anos a tentar conquistar os benfiquistas, mas de cada vez que mete os pés pelas mãos destrói o reduzido capital de confiança de que dispõe junto dos adeptos. Mais do que ansiar por novos começos, parece-me improvável que o jogo de pés e as saídas de Vlachodimos venham a conhecer melhorias substanciais com Schmidt. Os outros dois não são a primeira opção de que o plantel precisa, apesar de ter gostado de ver o Samuel em alguns jogos.
N A defesa vejo um auspicioso Alexander Bah, que parece encaixar no tipo de jogador pretendido por Schmidt, mas ainda por testar nos mares altos da liga portuguesa. Vejo o abnegado Gilberto que dá a vida pelo Benfica e a mais não é obrigado, mas de quem a equipa não deve depender em demasia. Depois vejo André Almeida e começo a ficar apreensivo. Será este o ano em que lhe fazemos uma - merecida - festa de despedida? Lucas Veríssimo mostrou um perfil de líder que não encontramos todos os dias, mas não sabemos quando estará a 100%. Morato parece-me mais caro à medida que o tempo passa. Tomás Araújo é promissor mas não há nada que nos diga que a sua hora já chegou. Grimaldo terá terminado a mais recente birra, mas a qualquer momento pode voltar a amuar. Ferro não será opção. Ristic ganhou espaço no Montpellier mas parece verde. Sandro Cruz está fora das opções. Termino com os centrais que já são prata da casa, Vertonghen e Otamendi, para expressar aí as minhas maiores dúvidas. Terá esta dupla as condições para jogar de acordo com as ideias de Schmidt, uma pressão alta que pretende acossar o adversário até recuperar a posse de bola? Parece improvável que esta dupla, por muito experiente que seja, tenha a alta rotação pretendida para oferecer garantias, o que é talvez mais preocupante quando consideramos que o PSV de Schmidt sofreu 40 golos na liga neerlandesa (é verdade que marcou muitos mais), jogando com centrais teoricamente mais velozes. Em suma, não é evidente que tenhamos as soluções nas laterais ou no centro para ir claramente ao encontro das ideias do novo treinador.
«Sofrer 40 golos será admissível na liga portuguesa se marcarmos 140.» Uma reflexão sobre o PSV de Roger Schmidt na época passada
N OS médios, vejo a elegância de um Weigl onde o PSV de Schmidt tinha um Sangaré que compensava com o raio de ação e com a agressividade sobre o portador da bola aquilo que lhe falta em elegância. Vejo Martim Neto e sonho com um Benfica feitos destes miúdos. Vejo Paulo Bernardo e, ainda traumatizado pela época anterior, pergunto se é aquilo que o meio-campo de Schmidt pede. Vejo o Florentino e sinto que perdemos uma oportunidade, não sei se o próprio ou quem geriu a sua passagem pela equipa sénior. Depois vejo João Mário, Taarabt, Meité, Pizzi, e começo a sentir alguma ansiedade. Logo depois lembro-me de Enzo Fernández, calma, temos o miúdo Enzo, e é então que começo a contar os dias até dezembro. Por falar nisso, já me fiz sócio do Vélez Sarsfield, histórico argentino que acaba de reforçar a sua massa adepta em largos milhões para a primeira mão dos oitavos de final da Libertadores, já esta quinta-feira. Mas, mesmo que o Vélez faça a sua parte, temos ainda muito espaço por preencher nesta zona do relvado e não é nada, mas mesmo nada evidente que o plantel atual tenha as respostas que procuramos.
M AIS à frente, vejo Diogo Gonçalves e Gil Dias, vejo Rodrigo Pinho e continuo à procura de sonho. Vejo um Rafa em relação ao qual estou desconfortável desde o seu desconforto muscular. Vejo um Seferovic mal amado e já semi-vendido. Vejo um Yaremchuk que ainda não convenceu. Vejo um Gonçalo Ramos a caminho de outro clube. Vejo um Henrique Araújo que chegou ao Seixal com o semblante de quem tem contas por ajustar, como se quer. Vejo um David Neres que já encheu as medidas num dos melhores Ajax europeus, faltando apenas escrever igual história de encarnado. Vejo um Diego Moreira cujos pés devem fazer o empresário dormir muito descansado, mas talvez seja ainda cedo para ele. Vejo um Tiago Gouveia cheio de atitude que apetece ver mais vezes. Vejo um Petar Musa que pareceu demasiado bom para continuar no Boavista, veremos se suficientemente bom para lutar no Benfica. Acima de tudo, ainda não vejo um Ricardo Horta ou outro jogador com perfil de 10 que possa desempenhar o papel deixado vago por Gotze, simultaneamente de pressão e criação. Ou seja, por enquanto vejo mais promessas do que garantias, e acima de tudo ainda não vejo aquela primeira linha de pressão que caracteriza as equipas de Roger Schmidt.
DIRÂO os mais otimistas que não é possível ver mais por enquanto e que tudo vai correr bem, mas a vida do benfiquista mais cético não é fácil. Têm sido muitas desilusões nos últimos anos. Schmidt achava que já tinha lidado com ambientes de elevada exigência, até chegar ao Benfica. Isto não é o PSV, caro Roger. Esses bons tempos terminaram. Sofrer 40 golos será admissível na liga portuguesa se marcarmos 140. Parece exagero para efeito cómico, mas não é. Não há pressão mais alta do que a destes adeptos, e é assim que será sempre. Felizmente o sorriso diz-me que vontade de nos convencer a todos é coisa que não falta a este novo treinador. Apetece-me confiar nele. Vamos a isso.