Um jogo normal

OPINIÃO02.03.202205:55

Sporting e FC Porto lutam por um lugar no Jamor. Sem sirenes a uivar nem mísseis a cair. Os ucranianos lutam pela sobrevivência

O século XXI tem sido intenso e a segunda década começa ao estilo dos loucos anos vinte do século passado: uma pandemia global devastadora e uma guerra em plena Europa. Mas se há cem anos o Mundo celebrava, em incontida euforia (daí o nome anos loucos), o fim da Grande Guerra (de 1914-18), que se pensava ser a última, e a promessa de um Mundo mais justo e equilibrado, agora, pela primeira vez em muitos anos, o Ocidente confronta-se com uma segunda versão da Guerra Fria e com o pesadelo da ameaça nuclear. Em face disto, que importância tem o Sporting-FC Porto de hoje quando há milhões de cidadãos europeus como nós - no caso, ucranianos e russos - a sofrerem as angústias e os sofrimentos de uma guerra fabricada por um autocrata perturbado com a ambição de refazer um império perdido?

É difícil prestar atenção ao futebol ou a outro desporto qualquer quando a Europa se encontra suspensa da ameaça sibilina proferida por um homem que detém o arsenal nuclear mais poderoso do planeta. De repente, passou a ser muito difícil sentir prazer na fruição das coisas simples e boas da vida - o futebol é uma delas - quando há milhões de pessoas como nós a sofrerem horrores que também podíamos estar a sofrer se fôssemos vizinhos de Vladimir Putin e não estivéssemos inclinados a satisfazer-lhe as derivas expansionistas. Para contextualizar as coisas. Os adeptos que acorrerem hoje ao estádio de Alvalade não correm riscos de serem metralhados por um caça surgido do nada ou acabarem reduzidos a pó por um míssil terra-ar disparado sabe-se lá de onde. No final do jogo, aconteça o que acontecer no relvado (uma escaramuça, por absurdo), as pessoas vão poder voltar para casa em vez de terem de ir dormir num bunker ou na estação de metropolitano mais próxima. E amanhã, a caminho do trabalho, em Lisboa e no Porto, em Faro e em Bragança, as pessoas não serão surpreendidas pelo tenebroso uivo das sirenes a anunciarem ataques aéreos e hão de poder passar num quiosque para comprar A BOLA ou num café para beber uma bica sem correrem o risco de serem cilindradas por um tanque como aquele que investiu miseravelmente contra um veículo civil que rolava despreocupadamente numa via rápida de Kiev (conduzido por um senhor de idade que, felizmente, sobreviveu à infame tentativa de assassínio). 

É este absurdo contraste ente a normalidade vivida por uns e o inferno sofrido  por outros no mesmo espaço continental - a nossa boa e velha Europa! - que nos impede de comentar, como gostaríamos, um jogo de futebol prometedor. Que me desculpem os treinadores e os jogadores do Sporting e do FC Porto, mas o único assunto relacionado com futebol que me apetece referir hoje é o dos adeptos que fizeram chorar o cidadão ucraniano Roman Yaremchuck no Estádio da Luz com uma formidável e sentida manifestação de solidariedade; sem esquecer os milhares de pessoas que, um pouco por todo o nosso País, foram para a rua no último domingo dizer aos ucranianos que estamos com eles e que podem contar connosco. Os tais momentos de emoção coletiva em que nos recentramos naquilo que é verdadeiramente importante: a vida! A vida vivida de um modo digno e solidário. Aquilo que está a ser negado de forma inaceitável a milhões de famílias ucranianas e russas. Russas, sim: também elas estão a ser vítimas de Putin. 

Sou filho da Guerra Fria e cresci a perceber no impenetrável Bloco de Leste uma ameaça ao modo de vida ocidental. Mais tarde, viajei pelos países da Cortina de Ferro quando estes ainda viviam sob o jugo de ditaduras estalinistas e depois li, estudei e vi o suficiente para compreender a dimensão trágica do mais longo e mortífero embuste do século XX - o Comunismo. Não que Putin seja comunista, embora continue a exibir as piores características do regime soviético: a infalível capacidade de mentir, distorcer, dissimular e manipular; e, bem entendido, de obliterar quem se atreva a atravessar-se-lhe no caminho. Chame-se Chechénia, Geórgia ou Ucrânia. Chame-se Anna Politkovskaya (jornalista de investigação assassinada a tiro), Alexander Litvinenko (oficial critico do regime morto por envenenamento com plutónio), Viktor Yuschenko (líder da Revolução Laranja e antigo presidente pró-ocidental da Ucrânia, envenenado durante a campanha…), Mikhail Khodorkóvski (oligarca critico do regime preso durante dez anos), Boris Berezovsky (oligarca critico do regime encontrado enforcado), Alexei Nawalny (opositor politico envenenado e presentemente detido) ou Volodymyr Zelensky, o atual presidente ucraniano.  

Não sei o que vos diga deste século XXI. Em pouco mais de vinte anos, tivemos guerras mortíferas (na Síria, na Chechénia, no Iraque, no Afeganistão, no Sudão, no Congo, no Líbano…); atentados terroristas a uma escala inimaginável (Nova Iorque, Bali, Moscovo, Madrid, Mumbai, Noruega, Paquistão, Paris, Christchurch…); uma pandemia devastadora;  revoluções e convulsões sociais de grande significado como a Primavera Árabe  e os movimentos #MeToo e Black Lives Matter; fenómenos naturais de uma violência cada mais extrema (furacões, ciclones, tempestades, cheias, erupções vulcânicas, ondas de calor, secas) que continuamos estupidamente a não querer perceber, apesar das explicações de quem sabe, os cientistas: é consequência das barbaridades que andamos a fazer ao planeta; e tivemos a confirmação da velha e paciente China como superpotência global. Só nos faltava uma guerra de agressão no continente europeu 83 anos depois de a Alemanha Nazi (liderada pelo criminoso Hitler) invadir, ocupar e partilhar a desgraçada Polónia com a então aliada União Soviética (liderada pelo criminoso Estaline), um detalhe que muitos fazem por ignorar. 

Se por um lado nunca estivemos tão ligados graças às ferramentas tecnológicas que realmente nos mudaram a vida e a maneira como interagimos com os outros (Facebook, Twitter, Instagram, Skype, Home Banking, Wikipedia, etc, etc), por outro continuamos a acordar tarde e a más horas para o que realmente interessa. A pergunta é óbvia e tem sido feita por aqueles que acompanham estes assuntos sem ser nas conversas de café : dados os antecedentes, não era possível ter travado Putin mais cedo? É que os sinais estavam todos lá. Desde fevereiro de 2007, no famoso discurso de Munique em que o czar russo profetizou o que vinha aí, desde o fim do Mundo unipolar à inevitabilidade de uma nova corrida às armas, passando pelas consequências nefastas da expansão da NATO … 

Para a semana tentaremos voltar a conversar sobre desporto. 

PS - Que os jogadores do Sporting e do FC Porto se inspirem na fabulosa final (podia ser a da Champions) que Liverpool e Chelsea jogaram no último domingo em Wembley. Foram 130 minutos de intensidade máxima. Sem fitas, sem interrupções, sem queixas.