Um contexto favorável

OPINIÃO07.03.202305:35

Olhe para onde olhar, vejo benfiquistas que acreditam. A partir daqui, o contexto pode mesmo ser determinado por nós e por mais ninguém

N ÃO foi a primeira vez que ouvi esta comparação no estádio. Assim que entrou em campo, alguém se referiu a ele como o Martin Pringle do atual plantel. O jogador talvez se sinta injustiçado se souber disto, mas posso assegurar que a esmagadora maioria dos adeptos que se referem a ele nesses termos o faz com humor e afeto suficiente para a coisa não ser levada como ofensa. O jogador do atual plantel é Petar Musa. O avançado croata, ainda jovem, trouxe com ele alguma habilidade de pés demonstrada no Boavista e aquela qualidade vagamente tangível que é já estar habituado à Liga portuguesa, como se a modalidade neste país fosse uma singularidade tal que só brilhando numa noite fria em Arouca alguém possa graduar-se no nosso futebol.

Não sei se toda a gente está recordada de Martin Pringle. Os que conseguiram esquecê-lo talvez continuassem melhor dessa forma, mas este avançado sueco notabilizou-se pela relação complicada com a bola e, na minha memória, por ter afirmado, prestes a iniciar a sua terceira época ao serviço do Benfica, que as duas primeiras temporadas tinham sido de adaptação. Parece uma piada, mas não. Todos os clubes vivem os seus ciclos tragicómicos e o Benfica infelizmente não é exceção. Desengane-se, no entanto, quem pensa que isto é sobre a falta de qualidade de Petar Musa. Nas duas ou três ocasiões em que ouvi esta comparação, o corolário foi sempre o mesmo: «Agora imaginem o Pringle nas mãos do Roger Schmidt. Se calhar a coisa tinha corrido de forma diferente.»

Que são jogadores diferentes é mais ou menos óbvio. Martin Pringle tinha a particularidade de ser um avançado mediano num plantel que não lhe ficava especialmente atrás (nem à frente). Petar Musa é um avançado abnegado e talentoso que pensa quase sempre bem, mas nem sempre executa da melhor forma. Isso não o impediu de ser um suplente com impacto, à medida dos amantes das estatísticas e dos adeptos que querem ver malta a comer relva. Musa nunca parece ter menos fome do que os colegas, e isso conta. Além disso soma golos suficientes nos minutos que passou em campo para justificar o seu lugar no plantel.

No entanto, ao contrário de Martin Pringle, Musa tem a sorte de integrar um plantel de grande qualidade, liderado no relvado por jogadores com inteligência acima da média, e conduzido fora de campo por um treinador que continua a revelar uma combinação rara de ambição e sensatez. Enquanto um não terá encontrado na equipa técnica as condições adequadas para a sua evolução, Musa parece ter em Schmidt um aliado. A moral da história é muito simples, apesar de dar muito trabalho: nem Martin Pringle era tão mau quanto o recordamos hoje, nem Petar Musa é o Martin Pringle deste plantel. Entre os dois, há uma enorme diferença que é tudo no futebol: o contexto.

O contexto é assimilado pelo adepto até se tornar convicção. É por isso que ninguém duvidará muito que, seja Musa ou fosse um Pringle às ordens de Roger Schmidt, tanto um como o outro têm ou teriam condições privilegiadas para deixar a sua marca no Benfica. Felizmente não é assim apenas para efeitos desta comparação aparentemente estranha. O princípio aplica-se à esmagadora maioria dos atletas no plantel principal e, arrisco, na equipa B.
 

Ao contrário de Martin Pringle, Musa tem a sorte de integrar um plantel de grande qualidade e conduzido por um treinador que continua a revelar uma combinação rara de ambição e sensatez


É aqui que as coisas se tornam interessantes e particularmente adequadas a esta noite de Liga dos Campeões - assim como às seguintes, creio. Se é verdade que o atual contexto favorece uma ideia de mobilidade e evolução individual, motivando cada um destes atletas, de João Mário a João Neves, para apostarem tudo neste momento da sua carreira, é ainda mais excitante pensar no efeito que isto produz na mentalidade de um grupo que respira união e solidariedade. A boa notícia é que estarmos aqui em março de 2023 nos coloca num lugar muito interessante. A má notícia é que ainda não chega para cumprir as expectativas dos benfiquistas, que são as únicas que interessa satisfazer. Estou plenamente convencido de que, por muita competência já demonstrada, este grupo ainda não atingiu o seu patamar máximo na presente época. E estou convencido de que está a caminho disso.

Aquilo que se segue - na Liga, e especialmente na Champions - vai ser diferente, mas é agora que nos devemos voltar a lembrar do contexto. Não é esse que estão a pensar. Por muito que nos convençam a partir daqui que o contexto vai ser determinado pelo dinheiro das equipas da Premier League (as mesmas que tantos falhanços têm protagonizado na Champions), por opositores mais experientes e predestinados a chegar à final (alguns dos quais já sofreram connosco esta época), ou por rivais que nos querem ver prostrados, daí não podem decorrer limites ao sonho.

Façam-me um favor. Esqueçam as análise técnico-táticas a partir daqui. Essas deixo para os treinadores. Está na hora de acreditar. Os génios da equipa, os operários, os titulares indiscutíveis e cada Petar Musa deste plantel, todos devem ver à sua frente o mesmo que os benfiquistas: faltam dezassete jogos para esta época terminar. Este momento tem tudo para pertencer ao Benfica. Há aqui uma combinação rara de crença, talento e capacidade de trabalho que parece destinada a algo mais. Mais do que nunca, jogo a jogo, isolando as variáveis externas, é deixar tudo em campo. Se não ganharmos, não será por falta de vontade ou de competência. Sinto que passámos muito tempo - nós benfiquistas e o nosso clube - à mercê da intempérie, e que finalmente chegou a vez de sorrirmos um pouco. Olho para o relvado e vejo isso. Olho para a bancada e vejo isso. Olhe para onde olhar, vejo benfiquistas que acreditam. A partir daqui, o contexto pode mesmo ser determinado por nós e por mais ninguém. Que façamos de todos os estádios a nossa casa e de cada adversário mais uma vítima deste clube inigualável.