Um clube vendedor ou um clube vencedor?
O Benfica tem que se preocupar em cumprir o seu desígnio, que é vencer mais e vender menos. Precisará de gastar muito melhor
Ederson; João Cancelo, Rúben Dias, Lindelof e Grimaldo; Weigl, Renato Sanches, Gonçalo Guedes e Bernardo Silva; João Félix e Darwin Núñez
E STE onze, avaliado pelo site Transfermarkt em 519 milhões de euros, é um de muitos. Se eu e o leitor déssemos por nós num café qualquer a discutir este assunto, tínhamos aqui conversa para o dia inteiro. Não é por acaso que, nos últimos anos, este se tornou um conhecido passatempo dos adeptos de futebol europeu. As equipas do Benfica que podiam ter sido mas nunca chegaram a acontecer. Os adeptos do Borussia Dortmund ou do Ajax acharão o exercício divertido. O problema é quando o adepto do Benfica tropeça repetidamente nestes onzes de fantasia e se vê obrigado a lidar com a realidade.
O problema é que toda a gente consegue construir um ou mais plantéis formidáveis feito de ex-atletas que representaram o Benfica ao longo dos últimos anos, mas nenhum dos onzes titulares chegou realmente a acontecer. Uns não chegaram a ser escolha, outros jogaram meia época, e outros há que nunca tiveram a companhia certa. A memória que o mundo real nos permite formar é um pouco mais triste: na verdade ninguém que tenha visto futebol atentamente nos últimos anos se lembra de um onze do Sport Lisboa e Benfica, da baliza ao ponta de lança, passando por defesa e meio-campo, que nos encha verdadeiramente as medidas.
Consigo reconhecer o privilégio que foi, apesar de tudo, ter visto muitos destes atletas envergarem o manto sagrado. Consigo. Mas considero-me mais lesado do que privilegiado, porque não me lembro de títulos suficientes conquistados com estes rapazes em campo. Dir-me-ão que foi melhor do que nada. Eu digo que, muitas vezes, parece-me que tudo não passa de um sonho que não chegámos verdadeiramente a viver, do qual temos sido privados porque, no final de contas, o Benfica tem escolhido demasiadas vezes a nota artística do balancete em detrimento do futebol que nos apaixona.
Mas eu continuo a acreditar. Em véspera de início de uma nova época, renova-se a esperança de mudança. Desta vez é que vai ser. Sem ironias. Não estamos cá a fazer nada se não acreditarmos pelo menos um pouco nisso. Temos um novo treinador que parece ambicioso e desempoeirado, começamos a ter algumas luzes sobre aquilo que será a estratégia de construção do próximo plantel, temos um presidente que recuperou algum fôlego depois de uma Assembleia Geral que foi bondosa para com ele. Ah, e temos os milhões que mais ninguém tem: os benfiquistas.
Os benfiquistas são uma gente imensamente generosa que conhece outra forma de estar que não permanecer com o clube na saúde e na doença, mesmo sabendo da crise de identidade que hoje assola o Benfica. É amor verdadeiro e é assim que deve ser. Mas é preciso admitir que, no processo de erosão identitária a que fomos submetidos, talvez nos tenhamos tornado demasiado tolerantes para com a realidade.
Por exemplo, não sei se merece grande celebração termos feito um grande negócio com o Darwin. Vejo isso com alguma estranheza. Mas permitam-me começar pelo início: se procurarem nas redes sociais encontram uma opinião minha no início da época passada em que, desesperado com um gesto técnico mal executado pelo nosso portento uruguaio, recomendei que este fizesse uns jogos na equipa B para ver se recuperava a confiança. O défice de confiança de uns é o excesso de outros. Felizmente, uma das grandes vantagens das redes sociais, como decerto saberão, é que a estupidez não paga imposto e por isso consegui manter as minhas finanças equilibradas depois dessa tirada. E aqui estou para, sem sombra de dúvida, defender o exato oposto do que afirmei há quase um ano. Penso ser razoável afirmar que o Darwin começou a época ainda à procura do seu melhor futebol, por vezes de forma atabalhoada. Penso também ser justo afirmar que o Darwin chega ao final da época com níveis de confiança e qualidade de finalização que fazem dele um dos futebolistas mais entusiasmantes do mundo neste momento. Aqui chegados, apetece dizer que ainda mal começou.
«De que serve Domingos Soares de Oliveira dizer que a situação financeira do Benfica não obrigava a vender Darwin, para depois vendermos»
É aqui que continua a residir o problema. O modelo (ou a sina) do clube vendedor tornou-nos a todos especialistas em transferências, mas faz-nos esquecer o mais importante. Vejamos: não seria este Darwin exatamente o avançado intenso, fulminante, pressionante, um dos tais que Roger Schmidt exige nas suas equipas? Não é loucura momentânea, caro leitor. Sei bem que é muito difícil manter um jogador como Darwin para lá de uma época como a que fez, mas apetece-me perguntar: será que pelo menos tentámos?
Eu bem tento, mas não sei se aguento mais um destes plantéis do Transfermarkt em versão o-melhor-Benfica-que-nunca-vou-ver-jogar. Quantos mais onzes imaginários vamos ver passar por aqui sem que façamos tudo o que está ao nosso alcance para manter os atletas mais tempo connosco, na mesma equipa? De que serve Domingos Soares de Oliveira dizer, numa entrevista há poucas semanas, que a situação financeira do Benfica não obrigava o clube a vender Darwin, para semanas depois vendermos o jogador? Quantas vezes mais veremos isto acontecer, quase sempre cedo demais? Que riscos financeiros estamos dispostos a correr para evitar que assim seja? Temos medo de viver acima do que podemos ou estamos demasiado habituados a viver abaixo das possibilidades? E, já agora, quantas vezes já aqui estivemos, a imaginar todas as coisas maravilhosas que faremos com os milhões do Félix ou do Darwin, para nos voltarmos a desiludir?
Repito. A esperança está cá. Venha daí a próxima época e que nos traga todas as alegrias e mais algumas que nos têm escapado nestes últimos demasiados anos. Só não me tentem convencer de que as alegrias serão as do clube conhecido por ser um prodígio vendedor. Eu sou apaixonado por um clube vencedor, não pelo Benfica vendedor. Esse é tolerável no futebol atual, mas é só isso. Não celebro venda nenhuma, a não ser daqueles que nos fazem perder tempo e não servem para ganhar títulos. Essa marca Benfica serve para encher capas de jornais, mas a história acaba sempre com os nossos a vestirem outra camisola.
O Benfica tem que se preocupar em cumprir o seu desígnio, que é vencer mais e vender menos. Para isso precisará também de gastar muito melhor, e boa parte desse investimento passará por reter o talento que nasce aqui, seja um miúdo formado no Seixal ou um uruguaio que é louco como os adeptos. O que sei é que, dez em cada dez vezes, esses talentos apaixonam-se pelo clube. Não vamos segurar todos, certo, mas não seguramos nenhum se não tentarmos mais. É fácil imaginar o que acontece a seguir. Quem sabe daqui a uns anos, talvez alguém olhe para um destes plantéis do Benfica e, em vez de imaginar o que podia ter sido, diga antes: que grandíssima equipa foi aquele Benfica dos loucos anos vinte que surpreendeu o mundo do futebol. Como é que eles foram capaz de segurar aquela gente toda?