Soluções de ano novo
'Selvagem e Sentimental', por Vasco Mendonça: «Não sei se Schmidt é tudo aquilo que já achei que ele era, mas, no entanto, aqui estamos, ainda em condições de tornar esta época histórica»
O futebol é o momento. Quem já colocou isto em prática sabe que é uma das frases mais libertadoras ao dispor do adepto. A máxima diz-nos que só há uma certeza: pouco ou nada mais interessa - para lá do momento. É libertador porque nos permite ignorar o passado e mandar o futuro às malvas, tudo em nome da alegria ou angústia do momento. À conta do momento, disse umas quantas coisas que há anos precisava de deitar cá para fora, e disse umas tantas outras que o tempo demonstrou serem bastante insensatas. Não me arrependo de nada, mas vem isto a propósito de ter escrito aqui há uns longuíssimos meses que concordava com a renovação do contrato de Roger Schmidt. Já cá volto.
Não é como começa e estamos muito longe de saber como acaba, mas, de momento em momento, o Benfica vai mostrando uma resiliência que talvez seja exatamente aquilo que estes tempos pedem. Tão ou mais importante, juntou-se à resiliência um pouco daquele futebol pelo qual temos suspirado esta época. Não configura nenhum milagre, mas já todos vimos isto no Benfica. Uma sucessão de exibições menos conseguidas, sinais de contestação dos adeptos, laços de confiança quebrados, meia dúzia de atletas aparentemente pouco galvanizados, e está o caldo entornado. Em vez disso, o mês de dezembro, que começou mal, trouxe a melhor resposta da época.
Pode ser pela desconfiança que foi pulsando ao longo dos últimos meses, mas a recuperação parece estabelecer uma tese, especialmente quando comparamos este momento com outros similares ao longo dos últimos anos. Visto em retrospetiva, fica a sensação clara de que os assobios e o triste episódio no jogo em casa contra o Farense tiveram o condão de provocar ou acelerar o proverbial virar de página. De repente, tudo voltou a fazer sentido. Caramba, até os jogadores adaptados deixam de parecer inadaptados. O momento tem destas coisas. A equipa e o treinador saíram do jogo frente ao Farense com tudo para acusarem a pressão nos dois jogos seguintes, dois dos mais difíceis da época, e aprofundar o distanciamento face aos adeptos.
Mas nada disso aconteceu. A equipa respondeu e continua a responder de forma categórica, fazendo tudo o que se lhe exigia nos restantes jogos deste mês, e jogando bem no processo. Jogadores que pareciam apagados parecem estrelas, suplentes pouco utilizados ameaçam entrar no onze. Será que esta equipa, que tantas dúvidas suscitou nos primeiros meses da época, mas que rematou trinta e sete vezes contra o Farense, já estava nessa noite a concretizar a sua remontada exibicional, ou será que só depois disso nos acordou para a vida? Nunca saberemos exatamente se os adeptos que assobiaram estavam equivocados na sua avaliação ou se foram eles que espicaçaram quando era preciso. Há uma certa dimensão de desconhecido nestas coisas.
Quem sabe a equipa e o treinador simplesmente decidiram voltar-se para dentro, reafirmando internamente o trabalho demonstrado contra o Farense, e, no processo, marcado a sua vingança para o jogo seguinte, tal era a convicção de que podiam reconquistar os descontentes dos assobios. A vingança serviu-se bem quentinha, sob a forma de reconciliação. Não sei se é do registo de sentença em que hoje se escreve nas redes sociais ou se de uma certa solenidade destas páginas de jornal, mas tem-se por vezes uma ideia de que quem produz opinião se leva tão a sério que é incapaz de admitir quando se engana e diz disparates. Digo isto a propósito de uma cruzada quase bélica contra Roger Schmidt, não tanto a dos jornalistas, que essa pouco me aquece ou arrefece, mas a dos fazedores de opinião que sentenciaram o treinador do Benfica a uma morte lenta. Não penso que o tenha escrito de forma categórica, mas sei o que pensei e dei por mim a dar os dias de Schmidt no Benfica por contados.
E, no entanto, aqui estamos. Há vários fatores que podem explicar isto, o mais importante dos quais a competência e vontade demonstradas perante uma situação adversa, mas vejo aqui um outro aspeto que me tem feito refletir, sobre o momento e sobre o que quero de tudo isto enquanto adepto. Talvez a ânsia de tudo ganhar, sempre, sem outra forma de jogar que não seja a mais deslumbrante, talvez tudo isso seja por vezes uma armadilha. Onde outros treinadores teriam naufragado, este permaneceu e até disse umas verdades pelo caminho. Não foi preciso ver uma luz nem preciso ir ver o mar. A resposta apareceu e foi dada fundamentalmente dentro de campo. É mais ou menos assim que tem de ser, não é? Não sei se Schmidt é tudo aquilo que já achei que ele era, mas, no entanto, aqui estamos, ainda em condições de tornar esta época histórica.
Sim, é verdade que o futebol é o momento. E, não, não sei onde estaremos daqui a um mês, assim como tão cedo não voltarei a pronunciar-me sobre a duração do contrato de trabalho de Roger Schmidt. Tal como o leitor, também tenho umas quantas resoluções de ano novo, mas neste momento estou mais interessado em soluções para o ano novo. Comecemos por essas. Haverá seguramente lugar a uma discussão mais estratégica e de vistas largas em relação ao futuro do Benfica, e ao lugar de Roger Schmidt, mas nesta fase a única coisa que interessa é celebrar o momento. É isso que vou fazer, saboreando com a liberdade concedida ao adepto, e, se possível, prolongando essa boa sensação até ao final da época.