Razão e coração
Entusiasma-me a ideia de um duelo Benfica-Nápoles na final da Liga dos Campeões. E não perdi a cabeça de vez
«MUITO entusiasmado com o Benfica-Nápoles na final da Champions League.» A frase é da autoria de John Muller, membro da equipa do The Athletic, excelente publicação especializada no melhor do desporto mundial. John Muller destaca-se na di- mensão analítica do futebol e tem por hábito examinar o jogo a partir de um lugar em que as métricas quantitativas são a chave para compreendermos aquilo que vimos e determinantes para percebermos o que mais poderemos esperar. Em suma, é alguém que privilegia a razão em detrimento do coração.
Não deixa de ser curioso, porque, se perguntarem a qualquer adepto do Benfica, nos dias que correm, ele partilhará mais ou menos a mesma observação, com pequenas diferenças. A verdade é que na cabeça de um adepto do Benfica - cha- memos-lhe Vasco para efeitos deste exercício - não interessa com quem jogaremos a final da Champions, se o Nápoles ou outra equipa qualquer. Só interessa saber que a coisa parece plausível. E também não é preciso sustentar a previsão em indicadores quantitativos concretos. Aliás, dispenso mesmo esse excesso de análise. Os expected goals ou as transições ofensivas que me desculpem. De resto, mesmo que tentasse, por esta altura já perdi a conta aos golos marcados, tenho dificuldade em lembrar-me dos poucos golos sofridos, e não tenho páginas que cheguem neste jornal para enumerar todas as vezes que esta equipa me entusiasmou, mesmo quando não marcou. Não sei quantas ocasiões de golo criamos em média por jogo, não sei quantos maus passes protagonizou o Enzo esta época, quero lá saber quantos dribles fez o Rafa, e também não me interessa assim tanto saber exatamente quantos quilómetros já correu o Aursnes. Assim a olho, com elevado grau de certeza, direi que me entusiasma a ideia de um Benfica - Nápoles na final da Champions League.
Os leitores mais cépticos dirão que perdi a cabeça de vez. A esses, explico que a razão e o coração deram as mãos e se uniram em torno deste Benfica. Há que acreditar e exercitar uma das mais conhecidas técnicas em matéria de crença aliada ao trabalho: devemos visualizar o resultado, não o resulta- do específico de um jogo, mas o desfecho pretendido das nossas ações, as conquistas que pretendemos realizar no final desta época. E, neste momento, feitos alguns cálculos, parece-me muito razoável esperar que discutamos cada uma das competições em que esta- mos. Estou cegamente convicto, pela primeira vez desde há muito, muito tempo, de que existem pessoas suficientes naquele balneário que pensam exatamente como nós, benfiquistas. Bem sei que tudo isto poderá vir a acabar num desfecho triste, mas o futebol tem mais graça se vivido ao momento, e o momento do Benfica é muito, muitíssimo bom. Contrariar esse senti- mento com excessos de racionalidade é coisa que eu deixo para os treinadores e restantes funcionários do clube encarregues de nos manter com os pés assentes na terra. Isso é trabalho (e é fundamental que assim seja). Já a ilusión dos benfiquistas pode e deve voar como a águia Vitória.
Há muitas coisas boas nesta no- va fase do Benfica, mas um dos aspectos mais interessantes é vermos que há cada vez mais gente que não veste de encarnado e também pensa como nós. Há muitos indicadores que podemos usar para determinar o quanto uma equipa vale, mas a opinião que temos em relação a nós mesmos é quase sempre suspeita. Neste caso, e pela primeira vez em bastante tempo, há muita gente insuspeita que parece concordar.
Benfica, sob o comando do alemão Roger Schmidt, está a protagonizar início de época sensacional. Frente à Juventus (4-3), Rafa, que redescobriu a alegria de jogar futebol, marcou 2 golos
Foram anos e anos a teorizar sobre a internacionalização da marca. Aposto que algures lá no estádio, num computador qualquer, encontra-se uma apresentação de um profissional de Marketing que visitou o estádio para explicar que o Benfica precisava era de deixar de ter uma águia no emblema, e que só assim daria mundos ao mundo (da folha de cálculo). Afinal não era preciso nenhum especialista em Marketing e todos sabíamos a resposta: joguem à bola, amigos. Certo, há mais algumas coisas que podemos fazer para internacionalizar uma marca, mas antes é preciso garantir que temos a atenção da nossa audiência. E, neste momento, ninguém tira os olhos deste Benfica. O futebol praticado, em especial na Liga dos Campeões, onde temos juntado a ousadia à disciplina tática, e corrido os riscos necessários para pôr em prática o nosso Rogerball, têm conquistado adeptos no mundo inteiro. Paz à alma do PowerPoint.
É bom poder partilhar o Benfica com o mundo e ver que esse amor não está hoje só na saudável cegueira do benfiquista, mas também é bom que algumas coisas neste Benfica sejam, no essencial, só para nós: a alegria dos adeptos, partilhada por cada um e transmissível, dos milhões que há demasiado tempo suspiravam por dias assim; a competência e o sorriso do nosso treinador, que desarma pela civilidade, abraça titulares e suplentes como se fossem os seus rapazes, e fala para os adeptos sem nunca dar o seu entusiasmo por adquirido; e, finalmente, os jogadores, que reencontraram uma alegria que há muito lhes faltava, a eles e às equipas do Benfica. Existem muitos exemplos disto no plantel atual, mas nenhum é mais expressivo que o de Rafa, um pequeno génio eternamente confirmado e adiado, que nem sempre pareceu ter vontade de cá estar, e que, por entre as fendas do seu feitio particular, deixou entrar a luz para sorrir como se tivesse encontrado o que há anos lhe escapava.
Pode ser apenas uma fase. Pode ser só um improvável alinhamento astral que o futuro se encarregará de desfazer. Pode ser o coração a falar mais alto. Ou então é mais do que isso, e a razão também é para aqui chamada. Há muito ainda pela frente, mas, se esta equipa continuar a entrar em campo com a mesma fome de baliza e golos, e se mantiver esta capacidade de reagir quando a bola está do la- do oposto, será forçosamente um caso muito sério nesta época. Geralmente, é nesse momento que os mais sérios analistas da modalidade e os mais irremediáveis doentes pelo clube se encontram a meio caminho para concordar em algo: nem uns nem outros se esquecerão da equipa que viram jogar. Foram unidos pela qualidade essencial disto, uma bola redondinha a circular como deve ser. Não admira que ambos a queiram ver chegar à baliza adversária.