Quem é o Enzo? ‘Je ne sais pas’

OPINIÃO07.02.202305:30

Depois de Enzo, nunca mais acreditaremos num craque que bata no peito para dizer que fica connosco. Vou dar o caso como perdido

NÃO sei se já repararam, mas anda uma joie de vivre no ar. A expressão, cunhada pelos franceses, traduz-se de forma literal como alegria de viver. De forma literal e simbólica, porque a alegria pode expressar-se das mais variadas formas. O francesismo acompanha-nos há séculos, mas nem sempre se materializa. A vida prega muitas partidas, finta as nossas expectativas com frequência, umas vezes porque o caminho a seguir é mesmo esse, sinuoso, e quase parece feito para nos testar; outras vezes acontece porque deixamos. Acontece muitas vezes por causa disso. Não querendo traçar retratos magnânimos e absolutos do povo a que pertenço, mas fazendo exatamente isso, diria que temos alguma tendência para sermos mais macambúzios do que festivos. 

E foi assim, macambúzios, que chegámos ao fim do defeso. Questionei, penso que questionámos todos, por que raio tínhamos de perder mais um craque na flor da sua forma futebolística, e a resposta é sempre a mesma: o dinheiro manda. Não é a FIFA, muito menos os tribunais afantochados que avaliam o cumprimento das regras fair play financeiro. Qual fair play, qual carapuça. O mundo da alta finança futebolística é uma cotovelada do Paulinho Santos enfiada no nosso proverbial nariz, ato cometido impunemente nas barbas do árbitro e até motivo e orgulho para alguns endinheirados pobres de espírito. 
 

Chiquinho transporta nos pés a paixão e a vontade de um miúdo que ambiciona muito ser campeão pelo Benfica. Joga e está no relvado com a mesma alegria dos adeptos nas bancadas 


À saída de Enzo Fernández, respondeu Rui Costa com os esclarecimentos possíveis perante um mundo em que clubes ricos, empresários e jogadores controlam o seu destino, muitas vezes à custa de outros, cada qual com a sua bandeirada. E por isso apreciei muito a franqueza de Rui Costa quando recorreu ao seu passado enquanto jogador para explicar que, se é primeiro a compreender o apelo dos milhões quando estes acenam por nós, hoje a sua responsabilidade é ajudar o Benfica a navegar esse mundo e defender, intransigentemente, os interesses do clube. Ora, se Enzo nem pelo mesmo dinheiro quis ficar no Benfica e tentar deixar o clube como ídolo, é de facto mais prudente indicar-lhe a porta da saída e fazer o melhor negócio possível. Feitas as contas, parece ter sido isso que aconteceu. Nunca mais acreditaremos num craque que bata no peito para dizer que fica connosco. Aliás, se voltar a acontecer, vou considerá-lo uma maldição e dar o caso como perdido.

Felizmente, a vida continua, e deve viver-se com alegria. Talvez tenha sido isso que uns quantos benfiquistas pensaram quando há uns dias recorreram às redes sociais para divulgar o novo cântico do clube: “Quem é o Enzo / Je ne sais pas / Quem é o Enzo / Je ne sais pas / CHI-QUI -NHO!”. Aquilo que parecia só mais uma piada da Internet resultou em vários momentos espontâneos que juntaram centenas de benfiquistas a cantar antes, durante e depois do jogo com o Casa Pia, na Luz. E o durante e o depois são especialmente importantes. Chiquinho jogou bem e ocupou o relvado com a mesma alegria e entusiasmo de quem cantava nas bancadas. É um jogador que quer muito estar ali, e não me esqueço que foram justamente Roger Schmidt e Rui Costa quem disse isso nas últimas semanas. Parecem frases feitas, mas nós sabemos reconhecer essa gana quando a vemos. É a gana de um miúdo que sempre quis jogar no Benfica e, sabemos hoje, recusou os milhões que outros aceitariam sem pestanejar, porque quer ser campeão no Benfica. E Chiquinho jogou exatamente como alguém que transporta essa vontade nos pés. Mas, mais do que a quantidade de passes acertados e ações importantes, o que mais me chamou a atenção foi uma certa descontração, uma facilidade em ter a bola colada ao pé, em rodar sobre os adversários, em ver linhas de passe menos óbvias onde outros encontram adversários. E, acredito, a partir daqui, só irá melhorar.

É isto que acontece quando as coisas estão no seu devido lugar e a tal joie de vivre se manifesta. O cântico dedicado ao nosso Chiquinho, que na verdade começou co- mo uma espécie de oração, precisou apenas de 90 minutos para se transformar numa crença convicta num futebolista que nem sempre encontrou o seu espaço no clube, mas que trabalhou até alguém acreditar nele. E nada disto acontece por acaso. É mesmo porque o clube, os jogadores, o treinador e a sua equipa técnica, o presidente, e quem mais se quiser juntar, estão unidos. Foram 90 minutos felizes, não só porque jogámos bom futebol, ou porque ganhámos sem espinhas (para desgosto de alguns inimigos...), porque enchemos as bancadas e virámos a página com a rapidez que o momento exigia. Até um momento algo triste, como a despedida de André Almeida, foi transformado numa ocasião feliz, diria mesmo bastante comovente. Achei muitíssimo digno da carreira do jogador, e digno da grandeza do Benfica, que a direção tenha escolhido despedir-se do jogador com o estádio cheio, com as taças sobre o relvado, expondo a grandeza que o André acrescentou ao clube, ali, à vista de todos. Não foi fácil, mas, por todos os defeitos que alguém possa ter exibido ao longo de mais de 300 jogos ao serviço do Benfica, muitas mais foram as qualidades que fizeram dele peça essencial nos títulos do clube. Muito obrigado, André.

Quem é o Enzo? Je ne sais pas. Pontapé nisso! Nada está ganho, mas os 3 pontos de sábado pareceram-me mais do que isso. Foi uma tarde em que muita coisa fez sentido em simultâneo. Despedimo-nos de quem merecia, ignorámos quem nos desmereceu e cantámos pelos que cá estão, que continuam a mostrar querer isto tanto como nós. Que se lixe o defeso. Venha daí essa joie de vivre. Venha daí o próximo jogo, em Braga. Vai ser complicado, vai. E muito. Mas já o dizia um conhecido tetracampeão: se fosse fácil, não era para nós. E este Benfica - que somos nós todos - parece-me pronto!