Problemas de primeiro mundo

OPINIÃO17.01.202305:30

O arranque em janeiro não vai assim tão mal, mas podia estar a ser melhor; não há, porém, motivo para alarme ou para duvidar

A S palavras mais interessantes que ouvi na última semana pertencem a  Luciano Spalletti. Foram ditas na véspera do importante confronto frente a uma Juventus em recuperação acentuada. Questionado sobre o seu adversário, o treinador do Nápoles explicou aquilo que o distinguia da Juve e do seu treinador: «Allegri encaixa na mentalidade da Juventus segundo a qual vencer é tudo o que importa. Aqui em Nápoles, somos feitos de alma e coração. Maradona jogou aqui, venceu aqui e, ao vencer aqui, mostrou quão belo o futebol pode ser. Não podemos jogar o nosso futebol sem um tributo a esse legado estético.»

Há algo de bonito, diria mesmo restaurador de fé na humanidade, quando vemos o futebol de um clube ser definido desta forma, não como mais uma ideia de jogo de mais um treinador que por ali passou, mas como um dever perante os adeptos e perante a história do clube. Muitas vezes ouvimos isto ser dito e descrito numa palavra. É a identidade, esse debate filosófico em que muitos participam e poucos chegam a um consenso.
A identidade é reconhecida na história e no trato. Umas vezes vem de longe, outras vezes cruza-se com alguém pelo caminho e é assim que lhe somamos alguma coisa nova (o inverso também pode acontecer). Sinto que a chegada de Roger Schmidt, ainda que pouco tempo tenha passado, teve este efeito. Trouxe algo de fundamentalmente novo, de um ponto de vista cultural, comunicacional e desportivo. Já o escrevi uma vez e mantenho: mesmo havendo ainda muita história para escrever, vejo na passagem de Roger Schmidt pelo clube um impacto que não deixará os benfiquistas iguais.

O treinador do Benfica trouxe uma coisa na qual os clubes grandes insistem sempre, mas que nem sempre transparecem: uma cultura de exigência. Não se limitou a dizer o que ia fazer. Fez o contrário. Ficou calado e, quando demos por nós, o trabalho apareceu feito e a equipa do Benfica entrou em campo a jogar um futebol de dimensão adequada ao Benfica.

Que futebol é esse? Não sou especialista tático, mas consigo identificar alguns traços que o definem, que são aquelas coisas evidentes que a todos nos entusiasmam mesmo que não saibamos grande coisa da tática, porque cada gesto dos jogadores sinaliza essa diferença: uma urgência enorme em recuperar a bola quando se encontra nos pés de um adversário e a capacidade de imprimir uma agressividade a essa procura da bola que não torna a equipa menos cerebral; um posicionamento em campo que parece afirmar sempre dominação, dizer quem manda aqui somos nós; a vontade de chegar rapidamente à baliza adversária, treinada, sim, mas suficientemente elástica para oferecer soluções diferentes perante o mesmo problema; e um naipe de jogadores de valia indiscutível.

Esta identidade não é o Benfica, historicamente falando, mas também é. Foi assim que Roger Schmidt conseguiu uma sequência de 28 jogos sem perder, vencendo quase sempre, fiel à tal identidade como eu a vejo e somando-lhe as suas ideias de jogo. Não deixou ninguém indiferente, nem mesmo os adversários. Quanto aos sócios e adeptos, comeram tudo e choram por mais. É por isso, creio, que todos concordaremos numa coisa: o Benfica que vimos antes do Mundial era melhor do que este que empatou frente ao Sporting. Não faria disso caso se não tivesse sido mais um jogo em que o Benfica perdeu pontos e pareceu empalidecer um pouco face a um adversário bem organizado. Não pressionou tão alto, não teve tanto a bola, nem sempre soube o que fazer com a mesma e não procurou diversificar as soluções para os problemas com que se foi deparando. É verdade que podia ter ganho, mas de pouco satisfaz olhar para estatística. A exigência não é menos do que vencer todos os jogos, em especial os disputados frente a adversários diretos e rivais.

Aconteceu algumas vezes nas últimas semanas e, mesmo não sendo de fazer soar alarmes, há alguns aspetos que parecem tornar-se mais evidentes à medida que os jogos se sucedem:
- Schmidt mantém-se fiel a um núcleo duro de jogadores - poucos para lá do onze - com os quais constrói o onze titular, o que parece provocar desgaste em alguns desses jogadores - João Mário e Aursnes têm parecido menos bem fisicamente, p. ex. - numa fase da época em que ainda está tudo por definir;
- as lesões de jogadores fundamentais - Rafa e Neres - estão a tramar as nossas intenções e a expor algumas insuficiências até aqui invisíveis;
- à data de hoje, poucas serão as opções no banco de suplentes verdadeiramente capazes de transformar um jogo de maior grau de dificuldade, apesar da entrega de todos (excepção feita a Draxler, que até na atitude me parece uns furos abaixo);
- os adversários têm parecido mais confortáveis frente a nós. Parece-me que se perdeu aquela agressividade boa que nos fazia perseguir o adversário até este nos devolver a bola; isso tem permitido a mais gente pisar o nosso meio campo em condições de transportar a bola por mais tempo e para mais perto da nossa baliza, o que não é bom.

Agora imaginem se o Benfica não fosse primeiro classificado na Liga desde o arranque da época, se não tivesse acabado de passar mais uma eliminatória da Taça de Portugal e estivesse a caminho de uma eliminatória da Liga dos Campeões. Acho que percebem. Não há motivo para alarme, mas seguramente não é altura de abrandar ou de duvidar. O arranque em janeiro não vai assim tão mal, mas podia estar a ser melhor. Esqueçam as arbitragens e afins, todos sabemos que isso não explica os soluços das últimas semanas e falar sobre isso é ignorar o que vai menos bem. A culpa, essa, é mesmo de Roger Schmidt e dos jogadores, que, talvez sem estarmos à espera, nos mostraram de repente que podiam ser do tamanho do Benfica que reside no olhar dos benfiquistas, dentro e fora de campo. Agora é continuar lá em cima. A identidade tem destas coisas, seja alicerçada na história ou na expectativa que vai sendo criada. Dê por onde der, há uma promessa para cumprir e um legado para respeitar. Felizmente não dependemos de mais ninguém a não ser de nós.