Pior que um cego? Só o árbitro que não quer ver

OPINIÃO14.02.202305:30

A arbitragem portuguesa sofre de três enormes défices em matéria de competência, transparência e comunicação

«Tal como toda a gente, os árbitros cometem erros. Cometemos um na noite passada e isso é angustiante para nós. Esta jogada irá pesar muito e causar noites mal dormidas enquanto procuramos ser os melhores árbitros possíveis.»

Associação de Árbitros da NBA
 

Areação acima aconteceu após um lance protagonizado por Lebron James, atleta dos Los Angeles Lakers, num jogo frente aos Boston Celtics. Na última jogada do encontro, Lebron avança para o cesto e sofre um contacto no momento de lançar, contacto esse que é evidente para todos os que assistiam na televisão, ou às repetições do lance, mas não para os árbitros do jogo.

A falta que ficou por marcar teria resultado em dois lances livres e uma provável vitória dos Lakers frente ao primeiro classificado da Liga naquele momento. A regra do challenge na NBA, que permite ao treinador pedir aos árbitros para verificarem uma decisão por jogo, não se aplicaria aqui, em primeiro lugar porque apenas pode ser usada para contestar uma decisão do árbitro. Este caso tratou-se de uma não-decisão, uma falta que não foi assinalada. Mas, mesmo que houvesse uma decisão do árbitro para disputar, os Lakers já não tinham mais challenges para utilizar. Estas regras fazem sentido? Talvez em tese. Quanto confrontadas com a realidade, não resolvem o problema. As regras, e o grau variável de competência dos árbitros, evidenciam a necessidade de se trabalhar para encontrar melhores soluções. Mas perante um sistema imperfeito, o que fizeram os responsáveis? Admitiram um erro e comprometeram-se a fazer melhor.

Os Lakers estão a atravessar um período muito exigente e precisam de regressar às vitórias que permitirão à equipa chegar novamente aos play-offs, a fase final da NBA. Lebron explicou de forma simples mas eficaz aquilo que este erro significa para a equipa: «Foi um dos melhores jogos que fizemos esta época. Que o resultado deste jogo dependa do juízo de alguém, ou da ausência de juízo, é ridículo.»

A admissão de erros não resolve tudo, em particular se os erros acontecem com frequência. E sim, é mais fácil fazer ruído quando se é Lebron James e não apenas mais um atleta da NBA. Mas o desporto não existe sem os atletas e sem as equipas que o tornam grande. Se a mais ninguém for devida uma explicação, parece-me razoável que pelo menos os protagonistas mereçam mais respeito por parte dos árbitros ou daqueles que tutelam essa atividade. E ser o Lebron James de uma modalidade é uma responsabilidade que deve ser usada para fazer o desporto avançar, seja de que forma for, incluindo na arbitragem.

A competência discernível semana após semana no futebol português mostra-nos árbitros que, não raras vezes, decidem mal, dentro e fora do relvado, muitas vezes de formas complicadas de entender. O tema da arbitragem torna-se fastidioso tal é o ritmo a que as decisões erradas se acumulam, mas algumas são mais difíceis de ignorar. Como se explica que a falta sofrida por Gonçalo Guedes em Braga não seja assinalada por um árbitro que observa o lance de frente a poucos metros de distância, ou não seja imediatamente sinalizado por um VAR com acesso a um corpo de evidência claro como água? Sei que vou ser acusado de clubismo por trazer este lance à baila e não outros, mas vivo bem com essa constatação do óbvio. É a terceira vez que falo sobre arbitragem em mais de 70 textos publicados neste jornal. Não vivo para este tema, mas certas arbitragens tornam-se tema inevitável. E sim, é claro que defenderei sempre mais o meu clube do que os outros, não apenas por ser benfiquista, mas também pela magnitude do erro. O mais elementar bom senso diz-nos isto: é difícil aceitar que o Benfica não foi afastado da Taça de Portugal, em parte muito significativa, por causa deste erro de arbitragem.

Há anos que representantes dos clubes, adeptos e até alguns árbitros afastados do ativo têm vindo a propor formas de melhorar a arbitragem em Portugal. A arbitragem portuguesa sofre de três enormes défices em matéria de competência, transparência e comunicação.

Se não há corrupção, e quero acreditar que não há, então estamos perante uma enorme incompetência. Admitindo que é apenas incompetência, mas que esta é frequente ao ponto de se tornar tema dominante num normal fim de semana futebolístico, então tem que ser punida de forma mais severa. Outro jogador dos Lakers, Dwight Schroder, disse que os árbitros deviam começar a ser penalizados financeiramente pelos erros cometidos. Em Portugal pagaria uma multa por uma reflexão que me parece bastante válida, mesmo que formular estas propostas não seja uma competência esperada dos atletas. Voltando ao primeiro mundo, em Inglaterra, menos de 48 horas depois de ter cometido um erro grave, o VAR John Brooks foi afastado por dois jogos. Coisas estranhas.

Persisto. Se não há corrupção, e quero acreditar que não há, e se de facto se quiser combater a percepção de manifesta incompetência face à atuação arbitral, uma coisa que se pode fazer desde já é remover o enorme manto de opacidade em torno das arbitragens. Os condicionamentos de que os árbitros se dizem vítimas no espaço mediático podem ser desmontados com uma medida radical, mas eficaz: garantam que a atuação dos árbitros está à vista de todos. Sabemos o que dizem treinadores, jogadores e dirigentes ao longo de uma partida de futebol. Não fazemos ideias do que diz um árbitro, ou do que discutem os árbitros entre si, nomeadamente as comunicações com o VAR. Normalize-se a transparência e a competência (ou falta desta) virá ao de cima. As decisões difíceis virão depois. Se a incompetência se tornar mais evidente, é possível que alguns árbitros não reúnam as mesmas condições para exercer a atividade. Mas de uma coisa estou certo: não ficaremos pior depois disso.

Por último, o défice de comunicação, um flagelo aparentemente secundário quando comparado com falta de competência ou de transparência, mas que é uma oportunidade repetidamente perdida por quem deveria estar preocupado em melhorar a arbitragem e, já agora, em proteger os árbitros. Proteger os árbitros não é escondê-los do confronto público com o erro, não é premiar a sua incompetência, não é devolver as críticas sem nada fazer assumindo um papel de mera vítima quando tantas vezes se é o agressor, e não é seguramente nada dizer sobre como se pretende melhorar um sistema que, manifestamente, não funciona de forma satisfatória. O lugar ocupado hoje pela arbitragem é de um confrangedor vazio de ideias, reflexão e capacidade de comunicar, tanto que se torna difícil de compreender a origem desta letargia.

Num texto publicado em Novembro de 2022, na véspera do arranque do Mundial, o mais conhecido árbitro português, tido por muitos como o melhor, Artur Soares Dias, explicava em defesa do país anfitrião que a História serve, entre muitas coisas, para evitar os erros cometidos. Este é o mesmo árbitro que achou por bem assinalar ontem o seu 24.º clássico com um post no Instagram, como deve fazer sempre que entender, mas de quem não me recordo de alguma vez ter visto uma admissão de erro, dele ou de quem dirige a sua atividade profissional. É curioso que os árbitros sejam expansivos nas suas intervenções quando há coisas bonitas para dizer e nada digam quando as coisas correm muito mal, como tantas vezes tem acontecido. Não sou a favor de se gritar na cara de um árbitro no meio do relvado e não sou pelo condicionamento das arbitragens. Por outro lado, é da natureza humana que a passividade de quem lidera uma arbitragem tão pouco competente gere reação a quem se sente prejudicado.

Aqui chegado, a questão que coloco é simples: será que alguém na arbitragem quer verdadeiramente melhorar esta atividade no que diz respeito à sua competência, transparência ou comunicação? Ou será que, afinal, contra os atletas, contra os adeptos, contra o óbvio estado das coisas, os responsáveis pela arbitragem pretendem apenas que tudo continue exatamente como está?