Para lá do protocolo
A vídeotecnologia existe para servir o jogo, não para proteger as decisões dos árbitros
HOJE quero falar-vos sobre duas realidades ligadas à vídeoarbitragem mas menos exploradas e discutidas, por não estarem diretamente ligadas à ação, às questões mais técnicas do jogo.
A primeira refere-se à tentativa de padronizar a forma como deve processar-se a intervenção do VAR nos jogos. A segunda assenta numa variável mais profunda (humana e porventura subconsciente), que pode toldar o raciocínio e afetar, de forma involuntária, o processo de decisão.
A linha de intervenção
É uma espécie de calibragem. Mede a forma como o videoárbitro intervém no jogo. Quando um VAR tem uma linha de intervenção baixa, depreende-se que é mais ativo, que analisa os lances de forma mais minuciosa, que participa frequentemente no processo de decisão. Já quando é «alta», entende-se que tem uma leitura mais ampla e tolerante do contacto físico. Só atua quando o erro em campo é demasiado evidente e grosseiro. Intervém pouco, muito pouco.
O problema desta linha é que não é estanque. Depende de uns para outros. Varia em função da personalidade de cada um e isso reflete-se nas decisões. Por muito que se queira fixar uma bitola mais razoável e intermédia - o ideal, neste caso -, haverá sempre faltas que aos olhos do José são óbvias mas aos olhos do Francisco não. Não há muito a fazer aí, a não ser treiná-los cada vez mais e melhor, para que a uniformidade possível seja maior. O pior que pode acontecer ao futebol é acerto e erro dependerem de pressupostos pessoais de análise. Isso já acontece em campo, mas não pode acontecer em sala, onde a tecnologia está agora presente. Quanto mais alinhada estiver essa linha, mais consistentes serão as decisões. A perfeição aqui é impossível, mas com treino há ainda espaço para melhorar.
VAR demasiado pró-arbitro
Não é crítica, é uma constatação de facto relativa a um processo intrinsecamente humano: muitas das decisões do VAR baseiam-na na comunicação prévia que tem com o colega de campo. Não é fácil contrariar um árbitro quando este lhe diz que não teve dúvidas sobre o que viu. Não é fácil dizer-lhe que está claramente errado e que tem que mudar a decisão
É geralmente aí que a tal dúvida razoável ganha outra dimensão e a decisão inicial só tende a ser contrariada quando as imagens mostram que o erro, afinal, foi absolutamente inultrapassável.
A questão é que não pode ser assim. A vídeotecnologia existe para servir o jogo, não para proteger as decisões dos árbitros. Ela é (bem) paga pelo futebol para trazer verdade e justiça ao futebol, não para servir de cobertura a erros sob o manto protetor de uma qualquer comunicação anterior. Para isso já chega o rigor protocolar. É preciso ganhar consciência disso.
Não há amigos ao serviço da decisão. Ela só tem que ser justa, corrobore ou não o que se viu ou intuiu dentro do terreno de jogo. Se não for assim, não acrescenta valor. Naturalmente que esse é um processo humano, de consciencialização, que custa e incomoda, mas que deve ser trabalhado para ser ultrapassado. Isso para bem da credibilidade da ferramenta e da própria arbitragem.