Os Enzos passam, o Benfica continua

OPINIÃO03.01.202305:30

Estávamos todos convencidos de que Enzo não nos ia trair assim que a primeira miúda gira lhe passasse à frente

M ALDITO Vélez Sarsfield que tratou de eliminar o River Plate em junho. Afinal o Enzo só devia ter vindo em janeiro. Esperem, não é bem isto. Se fosse assim o Benfica não estaria a fazer a época que tem feito. Pensando melhor, também já não teria chegado em janeiro, e tudo por causa da maldita Arábia Saudita, que tratou de ganhar à Argentina e atirar o miúdo para a titularidade, o que lhe deu oportunidade de fazer o que tem feito em literalmente todos os jogos realizados esta época: controlar por completo o meio campo frente a todos os adversários que lhe apareceram à frente, fazendo tudo com uma maturidade e uma qualidade tão invulgares que há largos anos não se via um jogador assim nesta posição, não apenas no plantel do Benfica, não apenas na seleção da Argentina, mas no futebol mundial.

Talvez valha a pena começar aí. Nada em Enzo Fernández tem sido vulgar, e tudo o que aconteceu desde que chegou a Portugal pareceu mais ou menos inevitável. Eu sei que o nosso lado mais romântico esperava que a sua despedida do Benfica fosse um espectáculo bonito, com guarda de honra e milhões a levá-lo até ao aeroporto para ser feliz noutro sítio qualquer, só depois de conquistar todos os títulos possíveis ao serviço do Benfica. E até sei que o nosso lado mais romântico defende furiosamente esse romantismo recorrendo a um contrato de trabalho celebrado para o efeito muito pouco romântico de trabalhar e ser compensado financeiramente por isso, relação essa que podia e provavelmente devia ser cumprida, ou não fosse Enzo esta anomalia surgida num Mundial de futebol realizado a meio de novembro, quatro meses depois de o termos visto chegar à Europa como se vivesse aqui há muitos anos. Não seria de esperar uma guarda de honra e milhões a levá-lo até ao aeroporto porque, lamentavelmente, esses contos de fadas no futebol moderno quase nunca estão reservados para os clubes com menor poder financeiro.

Agora é fácil falar, mas talvez devêssemos ter antecipado, após quatro meses com o miúdo a jogar com o manto sagrado vestido, que, perante a não tão improvável eventualidade de o miúdo se tornar titular durante o Mundial, isso chamaria a atenção de meio mundo, até porque o mesmo já acontecera durante a fase de grupos da Liga dos Campeões. Ou, talvez após aquela primeira exibição promissora devêssemos ter iniciado os contactos com o empresário do jogador, pedindo-lhe para moderar os níveis de pato-bravismo e aguardar serenamente por notícias nossas, que, sabemos agora, surgiriam mais cedo ou mais tarde. Talvez devêssemos ter antecipado que um mês a ouvir o Messi dizer-te «anda bater, tu bates bem!» produziria efeitos violentos nos níveis de confiança de um jogador já de si absurdamente confiante. Mas agora que é mais fácil falar, apetece perguntar: o que é que teríamos feito de tão diferente assim? Alguém viu por aí múltiplos avisos a pedir que se acautelasse a situação do Enzo antes ou até mesmo durante o Mundial? Não, estávamos todos demasiado embevecidos a ver o nosso rapaz, convencidos de que ele não nos ia trair assim que a primeira miúda gira lhe passasse à frente.

Ora, o mais provável era que os clubes interessados nos mandassem passear quando lhes falássemos na cláusula de rescisão de 120 milhões após aquele golo contra o México, da mesma forma que todos os comentadores televisivos e adeptos nas redes sociais diriam que Rui Costa tinha enlouquecido se achava que ia vender o jogador por valores como esse, e que teria colocado o projeto financeiro à frente do projeto desportivo (mesmo que as semanas seguintes lhe tivessem dado razão). Agora vão todos jurar a pés juntos que viram tudo acontecer, que estava mais do que na cara. O mundo está cheio de leituras resultadistas e o importante é que não nos levemos demasiado a sério quando caímos nesse erro. Certo, Enzo prometia, mas não sei se já ditava uma loucura desse tipo. Os jogos foram-se sucedendo e parece-me que fomos todos na conversa do rapaz, que curiosamente ou não jogou quase sempre de azul e branco, uma combinação de cores que nos devia ter deixado logo preocupados. Mas não, celebrámos de forma emotiva o nosso menino a ser coroado melhor jogador jovem do mundial, e depois esperámos, como faz habitualmente o primeiro amor de um Enzo Fernández antes de levar com os pés.

Agora aqui estamos, revoltados com uma situação que na verdade dificilmente poderíamos ter contido, e que ninguém sabe muito bem como controlar agora. Tenho visto muita gente a bater no peito convencida de que as incontáveis horas no Football Manager servem para momentos como este. Há quem queira pôr o jogador na equipa B, para ele ver o que é bom para a tosse, mesmo sabendo que o nosso capitão de equipa - Otamendi - é o padrinho do rapaz em Portugal, mesmo sabendo que isso será um folhetim interminável nos canais de TV e nos jornais, mesmo sabendo que esse tema irá ensombrar de forma particularmente desconfortável o resto de uma época muito importante, mesmo sabendo que mais nenhum onze titular que tenha a infelicidade ou incompetência de perder pontos vai viver sem o lamento «isto com o Enzo em campo era outra loiça». E era mesmo, mas habituemo-nos.

Há também quem esteja convicto de que o atleta vai aprender a lição e voltar arrependido, a rastejar, pedindo o perdão de Roger Schmidt e de Rui Costa - notou-se aliás essa preocupação nas fotografias da festa de fim de ano publicadas um pouco por todo o Instagram. Há quem tenha um livro de cheques milagroso com zeros ilimitados que permitirá a Enzo ficar até final da época, mesmo que este tenha tornado evidente que não quer. Há também quem não esteja a ler bem o momento e queira ver Rui Costa crucificado, preso por ter cão e preso por não ter, mesmo que seja difícil para qualquer um de nós identificar exatamente o que teríamos feito assim de tão diferente, ou por que raio é que isso garantiria um desfecho mais positivo, como se isto não nos tivesse fugido a todos das mãos, como se o jogador e o seu empresário não tivessem a faca e o queijo na mão, ou como se não se estivessem nas tintas para o que qualquer outra pessoa nesta história pensa, pelo menos até haver um acordo que lhes faça a vontade. Há quem saiba de antemão que a permanência de Enzo no plantel nos garantirá uma Champions League, e que a sua saída nos conduzirá a uma eliminação frente ao Club Brugge. Talvez até tenham razão, mas espero bem que não.

E há também quem queira ver aqui o início do fim da época desportiva do Benfica, e quem tenha algum receio legítimo em relação ao que falta desta época, mas o encare com entusiasmo. Penso que é aqui que estamos, mesmo que ainda não o vejamos todos. Sejamos pragmáticos. Enzo Fernández será sempre um belíssimo negócio e irá à vida dele, e quanto mais cedo assim for melhor para todas as partes. Os Enzos passam, o Benfica continua. Ninguém está acima do Benfica e quem pensa o contrário tem mais é que ir embora.

Temos um belíssimo treinador que já demonstrou inúmeras vezes ser capaz de interpretar as circunstâncias e adaptar-se. Tem aqui uma extraordinária oportunidade para voltar a fazer isso mesmo. Temos um camião cheio de dinheiro para contratar alguns reforços que tornem a equipa tão boa ou ainda melhor do que foi até aqui. Temos apenas uma derrota em 29 jogos oficiais, uma derrota que custou bastante mas que não me parece ter custado menos ao treinador, aos jogadores e ao presidente. Temos adeptos que vão ao fim do mundo e voltam por esta equipa, e a têm feito chegar à baliza muitas vezes. Acho que toda a gente nesta história vai tentar fazer o que é melhor para o Benfica, excepto o Enzo e o seu empresário, que vão fazer o que é melhor para as suas contas bancárias. É assim o futebol. Temos de encontrar mais Enzos e, se Deus quiser, tê-los cá mais tempo, sem mundiais a meio de novembro. Ânimo! Não é momento de determinar sentenças aos protagonistas do atual Benfica, não é o momento de dizer que a história se repete, até porque esta história não é igual às anteriores. É, isso sim, um ano em que o Benfica pode voltar a fazer história. Essa é a única avaliação categórica que devemos fazer acerca do que pode vir a ser a época do Benfica. OK, falta-nos o melhor jovem do mundo, mas eu vou dizer uma loucura na qual muitos outros de certeza se revêem: somos demasiado grandes para depender disso e ainda temos tudo para sermos felizes no final desta época.