O treinador dos treinadores!

OPINIÃO04.02.202305:35

Só o treino (também comportamental) permite afirmar como excelentes treinadores e jogadores

Alonga experiência de treinador permitiu-me adquirir uma sabedoria comportamental capaz de interpretar os significados de determinados gestos e atitudes de jogadores e treinadores. Foi ainda como treinador que percebi o que queria dizer Renaud Barbaras quando afirmou que «o sentido de filosofar encontra-se hoje profundamente transformado: mais do que saber ou conhecimento, é vigilância.» (Barbaras R., Merleau Ponty, 11). 

Afinal, se queria mesmo compreender, não só os meus comportamentos, como principalmente os comportamentos dos jogadores, era-me exigida essa vigilância continuada; e se pretendia ainda garantir a respetiva transformação desses comportamentos em capacidades possibilitadoras de uma participação competitiva ao mais alto nível, tinha mesmo de estar atento e vigilante.

O que muitas vezes constatei ser extremamente difícil de alcançar de forma eficaz, tantas eram as coisas a que tinha de dedicar a minha atenção.

Portugal, apesar de ser um país pequeno e com menos possibilidades que muitos outros a nível europeu e mundial, possui hoje na modalidade de futebol, alguns dos melhores jogadores e treinadores do mundo. Mas, quase sempre, demasiado circunscritos aos aspetos operacionais da modalidade. Impõe-se, agora, abandonar determinados mitos se queremos que vencer competições se torne uma regra e não a exceção contida no facto de «jogarmos quase sempre bem, mas perdermos quase sempre mal».

Basta de continuarmos a invocar as habituais ‘falta de sorte’, de ‘bolas que não querem entrar’, ou de ‘limitações contidas nas nossas características morfológicas inatas’.
Precisamos assumir coletivamente estarmos demasiadas vezes impreparados para as exigências emocionais contidas na prática desportiva de alto rendimento.

Todos estes mitos e lugares comuns a que muitos ainda hoje se agarram, estão totalmente esclarecidos a nível neurocientífico e filosófico.

Alguns dos fracassos acontecidos nos momentos decisivos de Europeus e Mundiais, têm razões objetivas que importa esclarecer. Tal como as apontadas ansiedade competitiva e falta de concentração que por vezes revelam jogadores e treinadores.

Se a respetiva formação e preparação prévias não os preparam para os pressionantes climas emocionais contidos nas competições, naturalmente não adquirem em devido tempo os hábitos exigidos pelo alto rendimento desportivo.

MESMO naqueles atletas e treinadores cujo potencial os distingue imediatamente dos restantes, só o treino continuado e globalmente qualitativo, (o que inclui o treino na área comportamental!), permitirá afirmá-los como excelentes. E essa é uma das razões fundamentais porque no nosso país, muitos (bastantes!) jovens jogadores e treinadores com talento vão ficando pelo duro caminho da busca da excelência.

No momento certo, não têm a oportunidade de possuírem alguém ao seu lado para os orientar e ajudar a ultrapassar com a persistência necessária as dificuldades que revelam; vacilam e resistem sempre que lhes é exigido focarem-se em objetivos, esforçarem-se e apaixonarem-se pelo treino continuado, sacrificarem-se pelo coletivo.

Necessitam criar hábitos de ambição, agressividade mental e processos de tomada de decisão rápidos e automáticos; como também não estranharem a constante necessidade contida ao mais alto nível competitivo de, com doses elevadas de resiliência, ultrapassarem as dificuldades e as complexidades comportamentais com que se deparam.

ENQUANTO seres humanos somos um todo onde, permanentemente, só o treino integrado e global irá permitir atingir elevados graus de rendimento. Precisamos assim de treinar com a qualidade, a exigência e o rigor científico e filosófico que um pouco por todo o Mundo caracteriza o tipo de trabalho que hoje se desenvolve de forma generalizada no alto rendimento desportivo mundial.

O que exige a todos aqueles treinadores portugueses atualmente reconhecidos pelas suas qualidades de líderes operacionais das suas equipas, agregarem às suas preocupações habituais, tudo o que se refira ao treino das suas atitudes e comportamentos diários, tal como de modo idêntico a aplicação do mesmo tipo de treino dirigido principalmente aos seus jogadores mais jovens.
 

O treino evoluiu, naturalmente, muito, desde os tempos em que contemplava o físico e o técnico, mas nunca o mental...

POR exemplo, a um jovem atleta profissional de futebol, tem de ser exigido adquirir capacidades muito para além da sua habilidade visual e espacial e da sua orientação espaço temporal. Não lhe basta a sua técnica e respetiva ‘visão tática’ de exceção. 

Quando a defender ou a atacar, para estes jovens tem desde muito cedo de estar perfeitamente adquirido que não só têm de cumprir com aquilo que lhes está designado como a sua tarefa operacional individual, mas também ser capazes de ajudar e complementar o todo da equipa. E tudo isto a acontecer de forma continuada em climas de trabalho onde dominam o rigor, a exigência e a aquisição de hábitos ao serviço de um todo maior que a soma das partes.

Para além do potencial e das caraterísticas dos portugueses, o desafio contido nos nossos futuros sucessos, reside na qualidade global do treino a que se sujeitem treinadores e jogadores; não havendo limites quanto à possibilidade de melhorarem, desde que se foquem nas tarefas do treino e se esforcem por serem cada vez melhores e gostem muito daquilo que fazem.

Mas atenção! Para conseguirmos fazer emergir jovens jogadores ou treinadores preparados para as exigências do alto rendimento, precisamos que sejam apoiados e orientados também a nível comportamental.
Tal como necessitamos que sejam positivos e mobilizadores os modelos e as referências representados pelos jogadores e treinadores que se vão distinguindo no plano internacional.

Impõe-se por isso mesmo que, a exemplo da prática já verificável em quase todas as equipas desportivas profissionais da existência dos designados fisiologistas que apoiam os treinadores acerca das reações fisiológicas dos seus jogadores ao treino e à competição, esse apoio seja complementado com o dos designados ‘treinadores dos treinadores’ a nível comportamental.

Tal como será decisivo que no decurso dos respetivos processos de treino, jogadores e treinadores sintam e convivam com estados emocionais e espirituais que lhes permitam adquirir hábitos de saberem reconhecer (responder) a cada emoção, sem deixarem nunca de assumir a enorme influência que têm em si próprios as dinâmicas coletivas das equipas a que pertencem.

CONCLUSÃO, impõe-se a presença nas equipas técnicas de clube e de seleções regionais e nacionais dos designados ‘treinadores dos treinadores’, responsáveis por tudo o que ao treino na área comportamental diga respeito. Perguntará o leitor, «mas o que é isso do treinador do treinador?»

Simplificando, diria que é o membro da equipa técnica que se responsabiliza  por dar permanente feedback ao treinador acerca dos seus comportamentos diários; como também, e principalmente, observa eventuais comportamentos desviantes do interesse coletivo por parte de alguns jogadores e alerta imediatamente o treinador para a necessidade de intervenção em devido tempo.

Nada de novo, afinal! Precisamente o que fazem nos dias de hoje os designados fisiologistas. Só que não se trata, agora, de fornecer ao treinador dados simplesmente fisiológicos. Estamos a falar de fornecer diariamente ao treinador importante informação acerca dos comportamentos dos jogadores enquanto seres humanos globais ao serviço das suas equipas!