O râguebi e o futebol sem maneiras
«Selvagem e Sentimental», a opinião de Vasco Mendonça
Corria o verão de 2009 quando o filósofo e escritor Alain de Botton, autor de alguns best sellers sobre a interseção entre a filosofia e a vida quotidiana, foi convidado pelos donos do aeroporto de Heathrow, em Londres, para ser o seu primeiro escritor residente. O desafio passaria por viver ali durante uma semana e contar a história ao mundo. O resultado da experiência chama-se A Week At The Airport e é um pequeno livro com histórias simples mas marcantes sobre quem ali passa os seus dias, em viagem ou a trabalhar nos diferentes serviços do aeroporto.
Há uma história nesse livro que recordo muitas vezes e me leva ao tema desta semana. É sobre uma trabalhadora dos serviços de Heathrow. Alain de Botton explica que os funcionários do aeroporto, em especial os que desempenham funções de atendimento ao público, recebem uma extensa formação que os prepara para esse tipo de interação, mas explica que não foi isso que lhe chamou a atenção. O autor decide conversar um pouco com a funcionária, ainda jovem, e fica a conhecer um pouco mais da sua história de vida. É nesse momento que a história produz uma verdade simples, mas poderosa: por muito que a formação dada pelos recursos humanos do aeroporto possa ter sido eficaz, seria difícil que só isso determinasse o sucesso desta interação.
Na verdade, não foi a formação ensinada no aeroporto que tornou aquela experiência agradável, só mais uma entre milhares de interações que ali acontecem diariamente. O que tornou o momento memorável foi, antes, determinado pelo resultado cumulativo dos muitos anos da vida desta pessoa em família, dos valores que lhe foram incutidos na infância e na adolescência, dos amigos que escolheu ou dos que a vida escolheu por ela, das influências que teve por perto, enfim, o resultado de uma combinação feliz de variáveis que, no final de contas, possui tanto de singular quanto de banal. Habituámo-nos a abordar muitas destas interações talvez mais convictos quanto à eficácia dos recursos humanos do que do trajeto de cada pessoa que nos atende. Mas a história é quase sempre mais complexa, e o caminho bem mais longo.
Vem esta história a propósito do Mundial de râguebi que está a ser disputado em França. Por estes dias louvamos as virtudes desta modalidade, mesmo naquele ambiente de enorme pressão: o civismo dos atletas na vitória e na derrota, a competitividade mesmo que as condições nem sempre sejam favoráveis, a resiliência até quando o resultado já não ajuda, a camaradagem à flor da pele, a seriedade desarmante de todos os intervenientes, e depois o uso cristalino da tecnologia, o modo como esta é transformada numa ferramenta de comunicação pedagógica, reduzida a ator secundário da história. Como se tudo isto não bastasse, talvez tenhamos a sorte de ter assistido a tudo isto num jogo da seleção portuguesa e aproveitado para ouvir o capitão de equipa após o final do jogo, na flash interview, explicar que boa parte dos jogadores são amadores que fizeram grandes sacrifícios para estarem ali e que o principal objetivo é mesmo inspirar os mais jovens para que estes vejam no râguebi o seu próximo desporto favorito. Parece elementar até dar por mim a pensar quando foi a última vez que ouvi um futebolista dizer isto numa flash interview. Chego ao fim de um jogo destes encantado. Ainda a quente, dou por mim a perguntar por que raio não é o nosso futebol um pouco mais assim, mas depressa regresso à realidade. A história é complexa e o caminho longo. A cultura criada pelo râguebi levou muito tempo a criar e a consolidar. Aquilo que impressiona nas boas maneiras dos praticantes é, para estes, a natureza do próprio jogo. Da formação à mais alta competição, os praticantes nunca conheceram outra realidade.
Uma pessoa sabe que começa a somar alguns anos de vida quando já perdeu a conta às ocasiões em que uma parte do país futebolístico aproveitou um Mundial da bola oval para lamentar o estado da cultura desportiva em Portugal enquanto assiste a homens adultos serem violentamente placados num ambiente de desportivismo que faz algum do futebol a que assistimos em Portugal parecer um fenómeno de selvagens. Não vamos mais longe. Pode dizer-se que é isso que faço com este texto. Admitindo que é esse o caso, gostaria de partilhar palavras mais animadoras, mas, tal como a funcionária do aeroporto que inspirou esta crónica, também no futebol português que encontramos hoje existe uma história e um resultado cumulativo, só que neste caso é composta de sedimentos e sedimentos de toxicidade, violência, antijogo, manha, opacidade, mau vencer e mau perder, uma infeliz combinação de variáveis da qual raramente consigo retirar, como desejava o capitão Tomás Appleton em Nice, exemplos que inspirem as crianças. Os sedimentos, quando acumulados ao longo de muito tempo, longuíssimas décadas, são a educação que nos resta. Se nada fizermos, tornam-se cultura e tudo o que há de mais transmissível neste jogo.
Aqui chegados, e por muito que o diagnóstico pareça ser claro, só com muita ingenuidade alguém encontrará sinais de reversão. Mas talvez a grande questão seja esta: será que queremos mesmo que o futebol seja um pouco mais como o râguebi? Sei que pedimos isso, mas tenho dúvidas que seja essa a vontade da maioria. Alegrar-nos-ia que o nosso capitão de equipa celebrasse uma exibição depois da derrota? Ficaríamos satisfeitos se os nossos jogadores aceitassem a decisão de um árbitro sem protestar? Ou seríamos mais felizes se o mesmo jogador se vingasse do árbitro e cavasse um penálti? Queremos mesmo mais e melhor futebol, mais tempo útil de jogo, ou queremos simplesmente ganhar e o resto logo se vê? Talvez então, afinal, o futebol seja tanto melhor quanto mais se consolidar como o espectáculo que é hoje, com tudo o que acontece dentro e fora do relvado. Pensem bem. Será que viveríamos confortavelmente com a paz de um desporto como o râguebi, que enche estádios e alimenta o melhor da rivalidade, da competição e da superação individual ou coletiva? Não falo de um daqueles anúncios de uma marca de desporto em que os valores aspiracionais vencem sempre. Falo da vida real em que o futebol é o desporto-rei, muitos procuram ganhar a qualquer custo, e o espectáculo é o campo de batalha. Já lá vão uns anos e, bem vistas as coisas, foi a este futebol sem grandes maneiras que assisti toda a vida. Inverte-se o exemplo do râguebi, mas o corolário é o mesmo: nunca conhecemos outra realidade. Haverá educação que nos valha agora?