O que nos diz a Kings League

O que nos diz a Kings League

OPINIÃO05.04.202306:30

Quem gere o futebol tradicional deve olhar para esta competição e refletir como vai captar a atenção dos mais jovens no futuro

FENÓMENOS como a Kings League, criada  por Gerard Piqué e pelo streamer Ibai Llanos, ajudam a colocar o futebol tradicional em perspetiva e deviam obrigar os seus mais distintos responsáveis a refletir sobre o futuro da modalidade e a forma como ela será consumida pela Geração Z. Há sinais cada vez mais evidentes, suportados em dados concretos, de que as novas gerações podem vir a distanciar-se deste espetáculo se nada for alterado. Isto pode soar a falso alarmismo quando vemos as bancadas cheias nos grandes campeonatos , mas se observarmos atentamente o público, qual é a percentagem de jovens com menos de 25 anos a assistir? 

A resposta pode ser encontrada em Espanha: a média de idades dos espectadores na La Liga é de 55 anos e quando comparados, os jogos das equipas que não Real Madrid e Barcelona perdem em público de TV para os jogos da Kings League. Um exemplo: numa determinada noite, o Getafe-Maiorca teve audiência de 60 mil espectadores enquanto a essa hora o El-Saiyans-Porcinos captava a atenção de 600 mil pessoas. Mais relevante ainda: de acordo com a Business Insider, a final da Supertaça de Espanha, ocorrida na Arábia Saudita, entre Real Madrid e Barcelona, teve um pico de audiência no país de 1,8 milhões de espectadores (a transmissão televisiva deu-se em canal fechado) e  à mesma hora a Kings League batia um recorde de 1,3 milhões nos vários canais (Twitch e TikTok). 

Para contextualizar quem não está familiarizado: esta é uma competição de futebol sete, composta por 12 equipas, presididas por streamers  famosos ou por ex-jogadores como Casillas ou Kun Aguero (também ele um streamer); é disputada por jogadores amadores mas com a possibilidade de entrarem antigos craques (já participaram Saviola, Capdevilla, Jonathan Soriano ou Ronaldinho Gaúcho). A bola de saída é conquistada pela equipa que, inicialmente perfilada na linha de fundo, chegar mais rápido ao meio-campo; os jogos não podem terminar empatados e o desempate é feito por shootout (cada jogador parte do meio-campo e tem cinco segundos para rematar à baliza); cada treinador tem o direito de jogar uma carta durante uma partida em que pode pedir um penálti a favor, a exclusão de um jogador adversário por dois minutos, que os golos da equipa valham o dobro durante dois minutos ou roubar uma carta ao técnico adversário; há ainda uma regra especial: aos 18’ (a dois do final da primeira parte cronometrada) o número de jogadores é reduzido por ordem do delegado da prova, que escolhe quantos elementos de cada equipa ficam em campo - muitas vezes 1x1, sem que se possa jogar com as mãos nem passar do meio-campo. 

O regulamento é alternativo, de facto, mas a revolução decorre porque esta é uma competição que se vive dentro do universo online. Quem acede ao Twitch (plataforma que transmite todos os jogos de forma gratuita) assiste aos relatos dos respetivos streamers (muito famosos em Espanha, basta recordar que quando Lionel Messi saiu do Barcelona para o PSG foi a Ibai Llanos a quem deu a entrevista de despedida e não a um jornal, rádio ou televisão espanhola ou argentina) mas também aos sons de microfones que captam tudo o que dizem os jogadores, treinadores e árbitros. Certa noite, uma criança de 10 anos que acompanhou o pai ao grande pavilhão onde se realizam os jogos da Kings League começou a ficar aborrecida enquanto sentada na bancada; decidiu então acompanhar o mesmo jogo pelo telefone e a experiência foi imersiva e entusiasmante. O presidente da Liga espanhola, Javier Tebas, apelidou de «circo» a Kings League, mas foi este espetáculo de variedades que levou 90 mil pessoas ao Camp Nou assistir à Final Four (bilhetes de 10 a 55 euros), que Neymar quer levar para o Brasil e na qual o nosso Ricardinho do futsal quer participar e trazer para Portugal.

Que isto é um espetáculo a roçar o reallity show, não contesto; mas é a primeira vez que um programa do género envolve relva, bola e jogadores. Quem manda no futebol de hoje não pode visualizar o seu futuro com os olhos do passado e muito menos descurar as coisas mais básicas: como pode a Liga propor medidas para trazer famílias aos estádios e nenhuma delas versar sobre os horários obscenos para quem quiser levar uma criança a um jogo?