O maestro e a baliza
Quis a ironia que, nesta narrativa de Vieira, todos devessem e ninguém pagasse a um dos maiores devedores deste país
L UÍS FILIPE VIEIRA voltou. Entre muitas outras histórias da sua vida empresarial que o próprio Vieira assegura fazerem dele um cidadão exemplar e um empresário de excelência apanhado numa teia de mal entendidos, houve ainda tempo para falar um pouco sobre o Benfica, que é como quem diz, para usar o Benfica como lhe fosse conveniente. Por um lado compreende-se e todos esperavam que as perguntas preparadas para a entrevista se detivessem bastante tempo nos temas do passado recente e da atualidade do clube, mas Vieira faz sempre um pequeno trejeito, o sorriso generoso de quem nos vai conceder a honra de saber o que ele pensa sobre o Benfica.
Disse muitas coisas, e felizmente começou pela mais importante. Não é Luís Filipe Vieira que deve algo ao Benfica. É o Benfica que tem uma dívida para com ele. Antes de Luís Filipe Vieira, não existia Benfica. Não são exageros meus. São mesmo palavras do ex-presidente detido há menos de um ano por suspeitas de ter desviado dinheiro do clube. São palavras escolhidas com tempo, seguramente com algum critério de um assessor de comunicação, na primeira intervenção de longo formato desde a ida à comissão para dizer que era dono de um palheiro. Desta vez Vieira explicou que o Benfica não existia quando ele chegou e até desabafou que não foi ele que roubou o Benfica mas sim o Benfica a roubá-lo, ao privá-lo da vida familiar, como se tivesse sido vítima de um regime autoritário que o obrigou a ser presidente durante duas décadas. Vieira, a vítima.
Este é o primeiro problema da entrevista de Vieira, e não é um detalhe. Em quase duas horas de conversa, alguém que foi presidente do Sport Lisboa e Benfica durante quase 20 anos não demonstra, por um momento que seja, gratidão pelo imenso privilégio que os sócios do clube lhe deram. Guarda palavras e críticas para todos, os que considera traidores, os que considera incompetentes, e todos os que pretende atacar com gentileza, com o atual presidente à cabeça, como aliás seria de esperar. Quis a ironia que, nesta narrativa de Vieira, todos devessem e ninguém pagasse a um dos maiores devedores deste país. Nada que o detenha, no entanto. Vieira considera-se hoje maior do que o Benfica.
O segundo problema da entrevista é que, repetidamente, Vieira afirma não estar ali para criticar ou diminuir Rui Costa. Explica que é pela paz e pelo progresso, que a estabilidade é um bem precioso, mas segundos depois faz exatamente o que diz não estar ali para fazer, sempre com a chica-esperteza própria do pior jogador de póquer, que não percebe que entrega o jogo todo de cada vez que abre a boca. Ao jogar este jogo sonso, Vieira demonstra mais uma vez que isto não é verdadeiramente sobre o Benfica ou sobre aquilo de que o Benfica precisa neste momento, porque seguramente não precisava de uma entrevista de Vieira, muito menos depois de tudo o que disse. Mas esqueçam o Benfica. Isto é sobre Vieira e continuará a ser, enquanto este sentir o seu ego amachucado. O Benfica é secundário quando há rancor e ressentimento para partilhar em direto na televisão. O Benfica que tenha paciência, mas agora há que lavar a roupa suja em direto. Paz e progresso, mas deixem-me só dizer duas ou três coisas. E porquê, pergunta o leitor? Porque o Benfica ganha com isso? Não, porque o poder de que Vieira pôs e dispôs durante 20 anos foi-lhe retirado de uma forma que não é do seu agrado. E agora, caro leitor, o Benfica que se amanhe.
O terceiro problema são as repetidas imprecisões ou inverdades de Vieira ao longo da entrevista, que acabam por permitir ao entrevistado contar uma história que carece de fundamento e, claro, do mais elementar contraditório. Dizer que se foi contra os 100 milhões de investimento quando esta mesma pessoa se gabou de ter feito grandes negócios em tempo de crise é um insulto à memória e à inteligência dos benfiquistas. Dizer que quando as pessoas estão «com o rabinho entalado» é que falam de formação, quando o próprio usou e abusou deste discurso sabendo que estava a ludibriar os sócios para esconder um modelo desportivo à deriva, é outra tentativa de nos tomar por parvos. Vieira desconsidera os sócios na sua relação com os factos.
O quarto problema é a frase essencial da noite de ontem. O entrevistador pergunta a Vieira pelo Vieirismo e o próprio responde de forma desconcertante. Não consigo dizer se há muito Vieira esperava por aquele momento ou se foi o que lhe saiu involuntariamente, como tantas vezes acontece quando diz disparates. Nunca é evidente com Vieira, mas desta vez saiu-lhe a verdade: «O Vieirismo é o Benfica.» É todo um tratado, uma frase esmagadora por tudo o que contém de leitura do passado, de diagnóstico do presente e de projeção do futuro, em especial as muitas ameaças que permanecem à vista de todos. É muito daquilo que é o Benfica hoje, e que importa extirpar. Há um legado que é mais do que isso. É cultura instituída. É forma de operar. É uma certeza pequenez de espírito. São as pessoas. São as raízes de uma liderança de duas décadas que, por muito que possa ter trazido de positivo ao Benfica, deveria ser eliminada sem contemplações. Infelizmente, o Vieirismo perdura.
O quinto problema é que a entrevista de Vieira não acontece quando ele cria a oportunidade. Essas persistirão por mais tempo, enquanto a vulnerabilidade da atual Direção face aos mandatos anteriores for difícil de esconder. Sempre que essa vulnerabilidade parecer bem escondida, Vieira vai reaparecer para estragar a festa. Porque se acha no seu direito. Porque lhe interessa mais Luís Filipe Vieira do que o Benfica. Porque talvez seja esta a sua forma perversa e nociva de cobrar a dívida que, diz ele, o clube tem para consigo. Talvez o nosso castigo seja este.
Quanto ao presidente Rui Costa, direi apenas isto: foi número 10 toda a carreira, mas enquanto líder do clube talvez queira passar para ponta de lança. Pode nem sempre lhe parecer, mas a realidade tem presenteado Rui Costa com autênticos golos de baliza escancarada. Ainda que só precise de encostar o pé, já perdeu algumas oportunidades claras. Talvez se tenha convencido de que só um enorme sucesso desportivo será verdadeiramente capaz de silenciar Vieira, mas Rui Costa teve sempre e continua a ter tudo para começar muito antes disso, já hoje, a virar definitivamente a página. Que aproveite a entrevista de ontem para compreender que há, de facto, uma página sombria que precisa urgentemente de ser virada. E que trabalhe com os benfiquistas para fazer de Vieira, definitivamente, passado.