O futebol explicado às crianças

OPINIÃO31.01.202305:30

A representatividade dos atletas da formação no plantel do Benfica tem significado muito mais do que apenas a capacidade de acrescentar valor

É difícil explicar o futebol a crianças. Não me refiro aos aspetos técnicos ou táticos. Os meus filhos, que são essencialmente iguais aos filhos dos outros, mostram pouco interesse no assunto. Este fim de semana tentei explicar-lhes o que era uma desmarcação. Convenci-me do sucesso da explicação, mas assim que passámos da teoria à prática ambos correram atrás de mim para me tentar tirar a bola, numa espécie de gegenpressing involuntário, que só terminou quando um deles recuperou a posse de bola, até rematar para onde estava virado. Percebi que era ainda cedo para passar à aula seguinte, em que tenciono falar-lhes do ataque à profundidade. 

Não surpreendo ninguém, em especial os que são pais, se disser que as crianças nos ensinam muitas coisas, quase sempre sem tentarem. Os meus filhos, como os restantes miúdos da idade deles, vão tropeçando em instantes do futebol, geralmente por interposta pessoa (o pai), e com isso provocam duas reações: por um lado, despertam em mim a vontade pedagógica de esclarecer de forma convincente, pelo menos assim espero, porque é que o pai gosta tanto de futebol. Por outro, ajudam-me a perceber de forma cristalina o muito que não aprecio no futebol, e que às vezes parece constituir a maioria.

Lembro-me de duas tentativas bem sucedidas esta época, em que bastou um convite para que prestassem atenção, tarefa complicada nos dias que correm. Mas a atenção deu-se. Até duas crianças com um curto entendimento do jogo e mil e uma distrações à sua volta perceberam, quase sem explicações minhas, que algo emocionante estava a acontecer. Por momentos os heróis no ecrã não eram desenhos animados ou youtubers de gosto duvidoso. As ocorrências deram-se na vitória contra a Juventus e na final do Mundial, dois jogos muito diferentes entre si, mas que reuniram os principais ingredientes da coisa: gente talentosa com vontade de ter a bola e um enorme apetite de vencer, de marcar o golo seguinte, e o seguinte. Não foram os únicos que ficaram presos ao que se passava. Ao longo destes dois jogos, por motivos distintos, raros foram os momentos em que senti o mundo, com as suas infinitas distrações, a puxar-me para fora do que acontecia no relvado. Não serei o único a pensar que esta sensação parece cada vez mais rara.

É mais difícil, no entanto, explicar aos meus filhos o que me mantém preso a uma segunda parte do Benfica em Paços de Ferreira. Geralmente recorro ao expediente de dias de festa resultantes de vitórias do clube de toda a família, e patrocinados pelo pai. O resto, bom, envolve esclarecimentos vários sobre os sentimentos fortes que o pai nutre por um clube de futebol que é muito mais do que um clube de futebol, conceito que eles ainda não assimilaram por completo. Mas nada se compara à dificuldade de explicar a duas crianças, por exemplo, por que raio devem permanecer sentadas ao lado do pai enquanto este assiste a uma final pouco memorável entre Sporting e FC Porto. É difícil porque eu próprio não encontro uma explicação para dar a mim mesmo.

Foi um daqueles jogos que pareceu conter o pior que pode haver no nosso futebol. Do reduzido tempo útil de jogo (41 minutos) ao festival de faltas - umas reais, outras imaginadas -, passando pela procura quase constante da quezília, premiada sempre que o árbitro não se apercebia da manha: houve de tudo um pouco, aliás, houve muito de quase tudo, exceto futebol. Não deixa de ser irónico, e lamentável, que o pobre espetáculo de sábado aconteça na final de uma competição que foi promovida como um verdadeiro acontecimento no futebol português, de tal forma que até foi transformado em produto para exportação.

O que têm as crianças a ver com tudo isto? Tudo. Esta reflexão contínua em torno da proposta de valor do futebol português tem algo a aprender com os mais novos. Tenho a certeza que só depois de ser pai ganhei maior consciência da gravidade da coisa, mas as crianças têm este dom de nos obrigar a encontrar explicações simples para coisas que, apesar de tudo, têm algumas camadas de contexto. As crianças não têm Twitter, não acompanham o futebol ao ritmo dos comunicados, e não observam o futebol com uma lupa sedenta de descobrir quem enganou quem. Portanto não há explicação que lhes valha, e porque nem eu vou querer enquadrar o porquê de um jogador simular uma lesão grave, de atrasar um jogo porque na verdade não quer jogar, ou o porquê de alguém fingir que foi agredido por um adversário, na esperança de que o árbitro caia nesse engano e expulse um jogador que nada fez. Nestas alturas, aliás, o futebol parece-me mesmo impróprio para os mais novos, de tão desvirtuado que chega a ser. E assim se reduz o futebol à sua explicação mais simples: dou por mim a concluir que o futebol, tantas vezes tido como um modelo de virtudes e comportamentos positivos para a vida em sociedade, é precisamente um manual de tudo aquilo que não quero ver nos meus filhos. No entanto, se o jogo for bem jogado, é provável que as crianças nunca mais tirem os olhos da bola.

Felizmente não resumo o futebol português aos maus exemplos. O adepto, aquele que gosta mesmo do jogo, é uma espécie de garimpeiro. Tolera aquilo que o futebol tem de mau e continua à procura dos bons exemplos, dentro e fora de campo. E felizmente também tropeça em alguns desses. Esta época tem sido muito feliz nesse sentido. A forma como o Benfica joga e se comporta dentro de campo, e até mesmo fora deste, revela uma ideia simples e vencedora: só o futebol interessa, só a capacidade de jogar mais do que o adversário nos deve preocupar. Mas há mais, e também tem vindo do Benfica: a representatividade dos atletas da formação no plantel sénior tem significado muito mais do que apenas a capacidade de acrescentar valor ao plantel. A formação do Benfica tem hoje uma forma de estar. São as crianças a dar o exemplo.

É um gosto assistir aos exemplos de cultura desportiva, ambição e capacidade de falar com os adeptos. Do António Silva, que nunca diz mais nem menos do que precisa e faz tudo o que pode dentro de campo, ao Henrique Araújo, que partiu para Inglaterra humildemente (por uns meses) e esta semana já dava uma flash interview em inglês fluente como se fosse capitão da nova equipa, passando por um Florentino que fez a travessia do deserto e soube agarrar a oportunidade assim que alguém voltou a acreditar nele, sem esquecer a imagem icónica do João Neves a abraçar o pai na linha lateral, há uma alegria nestes miúdos e motivos para sorrir de orgulho. Afinal basta o foco permanecer no essencial. Enquanto assim for, torna-se mais simples explicar aos meus filhos, afinal, porque é que gosto tanto de futebol, e do Benfica.