O ‘fintabolista’ apaixonado

OPINIÃO30.06.202306:30

O Zeca tinha tal potência de remate que até os pássaros recusavam sobrevoar a Falagueira...

D E todos os requisitos necessários a que um jogador fosse titular dos Ases da Falagueira, o Zeca preenchia apenas um: era o dono da bola. Ainda tentámos que fosse o guarda-redes, mas ele tinha de ser o avançado. Um fintabolista que driblava a própria bola. É verdade que tinha um pé canhão, mas também uma total ausência de calibre e uma relação de indiferença com a baliza, algo que ele apenas sabia existir de ouvir os outros contar… Mas sim, tinha uma enorme potência de remate, de tal forma que os pássaros decretaram o bairro da Falagueira como zona de exclusão aérea! Ninguém me tira da cabeça que o Zeca foi o percursor do sistema de três centrais…

«Um dia vou jogar no Benfica e vou estar nos cromos da Panini», ameaçava o Zeca. Ainda pensei em responder que não era preciso esperar pela Panini. Ele já era um cromo. Mas lembrava-me que era o dono da bola. E que a mãe dele nos convidava para lancharmos: um pão barrado com Tulicreme, uma fatia de bolo e um Sumol que nos aconchegavam a alma.

Um dia, o Zeca apanhou varicela a poucos dias do início do torneio inter-pracetas da Amadora. Tenho de admitir: houve festa nos Ases da Falagueira. Pela primeira vez, tínhamos uma hipótese de vencer o torneio. Chegámos estoicamente à final, com os Estrelas da Venteira. Mas a moral caiu por terra quando o Zeca compareceu, equipado, para o jogo decisivo. Provou ser o jogador mais consistente e regular que conheci…

A assistir a essa final estava a Paula, colega de escola por quem o Zeca alimentava uma paixão assolapada e não correspondida. Não é que o Zeca fosse feio, mas tinha tanto jeito com as palavras como com os pés… Ao enésimo disparate, a Paula riu desbragadamente. Pela primeira vez, sentimos pena do Zeca, no rosto a dor da humilhação. «Vocês não percebem nada de futebol, quando jogar no Benfica nem se atrevam a pedir-me autógrafos», gritou o Zeca… E, em desespero, quis chutar a bola para bem longe, em protesto. E, pela primeira vez, acertou na baliza, um golo que valeu a nossa única vitória no torneio inter-pracetas. Já lá vão 40 anos…

PS: O Zeca não chegou a ser jogador do Benfica. Anos mais tarde casou-se com a Paula. Vivem juntos há 25 anos. Emigraram para França. O filho é o goleador de uma equipa da 3.ª divisão francesa, dizem que tem potencial para chegar a um grande. O amor, de facto, faz milagres.