O 'fair play' (não) é uma treta
O 'Poder da palavra' é a rubrica semanal de opinião do antigo árbitro Duarte Gomes
Consigo compreender Jorge Jesus, autor da célebre frase que dá título à crónica de hoje. De facto, há no desporto de alta competição — sobretudo no futebol, onde as exigências são tremendas — momentos que são tudo menos um hino às boas práticas.
As simulações grosseiras (não esqueçamos, estamos a falar de expedientes deliberados para induzir árbitros em erro, prejudicando colegas de profissão), as perdas de tempo ostensivas e os protestos/gestos exagerados são algumas das práticas que representam a antítese do que se espera de atletas de topo, em termos de postura e valores.
Mas, por outro lado, é da mais elementar justiça sublinhar o fair play que muitos evidenciam em várias situações de jogo. E o mérito maior tem que ir para aqueles que, como Pepê, abdicam de lance em que podiam retirar óbvios dividendos desportivos.
O avançado do FC Porto percebeu que Pedro Amaral, seu marcador direto, caiu lesionado no relvado, deixando-o em situação tática muito vantajosa. Mas em vez de prosseguir a jogada, o jogador brasileiro parou o lance e esperou pela interrupção da partida, de forma a que o colega de profissão pudesse receber tratamento. Não é importante especular se o Pepê faria o mesmo caso o jogo estivesse empatado ou se a sua equipa estivesse a perder. Importante é aplaudir e elogiar o gesto, aquilo que realmente aconteceu e que pressupôs uma opção racional, honesta e altruísta. E são momentos destes, profundamente humanos, que dão cor e beleza a uma arte hoje demasiado perdida em valores diferentes.
Não. O fair play não é uma treta, sobretudo quando praticado em território tão exigente como é o do futebol profissional. O fair play é, na verdade, a forma mais nobre de valorizar o espetáculo, de educar jovens adeptos e praticantes e de devolver às pessoas a esperança de que há no jogo momentos imperdíveis de tão especiais e bonitos.
E não se pense que o exemplo de Pepê foi único. Não foi. Antes dele tantos outros, com mais ou menos mediatismo, mais ou menos impacto. Quem não se lembra, por exemplo, de ver Galeno colocar a bola fora, ao perceber que o adversário tinha-se lesionado sozinho (jogo da época passada, com o Shakhtar Donetsk)?
Muito antes disso já Paolo Di Canio, conhecido pelo temperamento irascível em campo, abdicou de uma clara oportunidade de golo quando viu o guarda-redes do Everton caído no solo. A atitude do italiano teve repercussão mundial e foi elogiada em todos os quadrantes.
Mais tarde, Miroslav Klose, ao serviço da Lazio, marcou golo ao Nápoles com a ajuda da mão. O árbitro não viu, mas o alemão assumiu de imediato a irregularidade do lance, levando à sua anulação imediata. O atacante passou a ser admirado e respeitado por todos os companheiros, colegas de profissão, árbitros, adeptos e imprensa. Haverá melhor recompensa que essa?
No dobrar do século, o Arsenal de Arsène Wenger marcou um golo quando um jogador do Sheffield United estava lesionado no relvado. O técnico francês não gostou e ordenou à sua equipa que permitisse golo do adversário no reinício do jogo. E assim foi.
Em 2011, Marcelo (ao serviço do Real Madrid) abdicou de contra-ataque muito prometedor ao perceber que o seu marcador direto estava fora do lance. O lateral brasileiro colocou a bola fora e recebeu aplausos de pé dos adeptos de ambas as equipas.
O fair play é a marca diferenciadora no jogo e em qualquer atividade desportiva. É a escolha certa numa realidade onde o mais fácil é fazer a errada. É por isso que é tão especial. E é também por isso que tem sido sucessivamente contabilizado como fator diferenciador em termos desportivos. Por exemplo, no Campeonato do Mundo de 2018 e depois de um empate a um com o Senegal, o Japão qualificou-se para a fase seguinte devido ao Critério do Fair Play (foi a equipa com menos cartões amarelos até então).
Por cada jogador que festeje golos através de penáltis que não existiram, haverá sempre outros que saberão que a batota tem perna curta e não merece reconhecimento sério da parte de ninguém.
Só escreve o nome na História quem é verdadeiramente honesto em campo e esses, felizmente, ainda são a maioria.