O DJ, o cantor e o mestre de cerimónias
Hoje já poucos se lembram do rapaz argentino que escolheu a riqueza em detrimento da felicidade de fazer parte deste Benfica...
FALTAVA pouco mais de meia hora para o início do jogo quando entrei no estádio para aguardar pelo início do jogo contra o Vitória de Guimarães. Ainda a caminho do lugar na bancada, entre várias coisas que me passaram pela cabeça, a primeira foi : que raio de música é esta? Um cântico do Benfica tinha sido transformado em música para a pista de dança e irrompia pelos ouvidos de todos os presentes, mesmo os que como eu aproveitaram para ir à casa de banho antes de se sentarem. De repente, já não estava no Estádio da Luz, mas na maior discoteca que alguma vez visitei. Num momento estava a equacionar a falta que o Ausrnes nos faria e até que ponto isso poderia dificultar a nossa vida no jogo daquela tarde, no instante seguinte estava a tentar processar a overdose de estímulos sonoros contida nesta remix benfiquista.
Omeu gosto musical torceu o nariz. Já a caminho do lugar, de imediato consultei as redes sociais e os grupos de WhatsApp para confirmar se o descontentamento com a escolha musical era só meu. Confirmei que não era, mas, quando já me preparava para publicar um tweet absolutamente inconsequente sobre o assunto, aconteceu uma coisa estranhíssima: avistei finalmente as bancadas e percebi que dezenas de milhares de pessoas agitavam os cachecóis e dançavam ao ritmo imposto pelo DJ. Procurei um pouco por toda a parte e não consegui avistar um único indignado do WhatsApp ou do Twitter. Os minutos passaram e nada. Entretanto, percebi que o DJ trazia a companhia de um cantor, por sinal bastante competente. A coisa, que já ia animada, evoluiu para níveis apoteóticos e até eu fui obrigado a pousar o meu chapeuzinho de snob para cantar e ver se espantava os nervos antes do jogo começar. Mais uma vez, a sabedoria da multidão impôs-se e aconteceu Benfica.
Aeuforia das bancadas no pré-jogo foi a mesma que se viu ao longo das duas horas seguintes, dentro e fora do relvado. O Benfica é hoje feito destes consensos alargados e de uma força imparável que, perante os amuos desta ou daquela minoria, a demove com carinho e muitos golos. Há uns meses perguntávamos como era possível que um rapaz chamado Enzo Fernandez surgisse de rompante com tanto génio e tanta maturidade, como se tivesse nascido pronto para aquele momento. Hoje já poucos se lembram do rapaz argentino que escolheu a riqueza em detrimento da felicidade de fazer parte deste Benfica, porque entretanto descobrimos que temos em Chiquinho um jogador à medida da nossa ambição, que há Aursnes para dar e vender, que há o melhor João Mário de sempre, e que, à sua maneira, o Benfica renasceu das cinzas de um eterno sonho europeu para hoje nos fazer sonhar com a primeira final de Champions em muitos anos. Sabem aqueles diagramas de Venn algo complicados em que vemos uma pequena área de interseção comum a uma enormidade de conjuntos? Foi isso que nos aconteceu.
Roger Schmidt, o ‘mestre de cerimónias’, abraça João Mário, enquanto o jovem estreante Cher Ndour é acarinhado por Jens Wissing, um dos adjuntos do treinador alemão
SEM esprimor para o DJ e para o cantor, ambos competentes na arte de galvanizar multidões, mas parece evidente que o maior responsável pelo sucesso da playlist é hoje o mestre de cerimónias Roger Schmidt. Sinceramente, estou numa fase da minha relação com este treinador em que o alemão podia pedir ao Rui Costa para passar uma hora com os maiores êxitos do Zé Cabra (aqueles três) antes de todos os jogos, o mesma tema de Rammstein em loop, ou uma playlist de música de flauta dos Andes, e eu aceitaria sem hesitar. Não sei a quem devo começar por agradecer esta enorme felicidade que nos aconteceu, mas, em certos dias como hoje, apetece-me antes de mais endereçar ao juiz Carlos Alexandre uma palavra de emocionado apreço.
ANTES que pensem que vou fazer a apologia de um estado justicialista à mercê de julgamentos na praça pública, explico que não é nada disso. Acredito na presunção de inocência. Acho que qualquer arguido deve poder defender-se num tribunal e ver o seu nome ilibado de quaisquer acusações, caso um juiz assim o decida. Mas também é um facto que às vezes nós humanos temos opiniões mais fortes sobre o Benfica do que em relação ao Estado de Direito. E é por isso nesse contexto que relembro a seguinte frase: «Schmidt? Há treinadores portugueses que serviriam perfeitamente para o Benfica.» Talvez o leitor já não se lembre desta frase. Foi proferida por Luís Filipe Vieira e publicada pela imprensa desportiva a 25 de abril de 2022, uma data simbólica porque celebra a nossa jovem democracia e a liberdade de cada um de nós, designadamente a liberdade para dizer disparates como este que coube ao antigo presidente do Benfica. Quis o destino que Vieira deixasse de ser presidente e quis o destino que o nosso treinador fosse um alemão sinónimo de uma ambição renovada e transformadora, exatamente aquilo que o momento do clube exigia, exatamente aquilo que Vieira ignorou nos últimos anos da sua presidência.
FOI estranho, por vezes penoso e muito sinuoso o caminho que nos trouxe até este momento, mas, após aquilo que parece ter sido o tempo de uma vida inteira, acho que não exagero se disser que nos saiu finalmente a sorte grande. É verdade que o juiz Carlos Alexandre fez apenas o seu trabalho e eu me limito a ser do Benfica, mas é inevitável pensar que, sem aquele dia 7 de julho de 2021, muito provavelmente não estaríamos aqui hoje a pensar orgulhosamente em tudo o que somos e, mais ainda, em tudo o que podemos vir a ser. O DJ e o cantor encantam, mas sabem quem é o mestre de cerimónias. E as bancadas rejubilam porque a música é outra.