Nunca confiei tão pouco na arbitragem
Michael Oliver analisa lance no VAR (IMAGO)

Nunca confiei tão pouco na arbitragem

OPINIÃO07.11.202310:50

O videoárbitro, escondido não sabemos bem onde, ora vê o que mais ninguém viu, ora fecha os olhos à mais flagrante das situações

O falatório provocado pelo futebol tem características que o distinguem da maioria das áreas da nossa vida, começando pelo facto de que raros são os temas do quotidiano que estamos disponíveis para discutir em circunstâncias tão díspares como um reencontro com um velho amigo num velório, o balcão de uma taberna frequentada por pessoas com quem provavelmente não partilharíamos outro balcão, ou uma esplanada apinhada de desconhecidos que se reuniram para, juntos, dizerem asneiras a cada meia dúzia de segundos e acabarem a discutir modelos táticos ou idas ao estádio com a cumplicidade de quem planeia ir ao velório do que morrer primeiro.

É assim por vários motivos, quase todos abonatórios para o futebol. Existe um reconhecimento do outro, ou uma aversão, estabelecida por via da nossa relação clubística com o jogo, que rapidamente ilumina a interação seguinte ou, se tivermos o azar de ouvir a resposta errada, nos cegará momentaneamente e talvez prive até da mais elementar racionalidade. O futebol acomoda muitas coisas, mas não é um daqueles mundos em que não há respostas erradas. Está cheio dessas e, no debate entre adeptos de diferentes clubes, está também cheio de respostas indisputáveis. É aliás algo que tem feito escola na nossa sociedade.

Por exemplo, de há uns anos para cá vemos muita gente discorrer sobre a era de pós-verdade em que vivemos, muitas vezes com o encantamento próprio de quem sente ter descoberto que, afinal, há mais do que uma verdade sobre o mesmo tema, e umas são mais falsificadas do que outras. O adepto de futebol sabe isto desde que é adepto de futebol. A ideia peregrina da verdade desportiva é uma coisa sempre bonita e útil para insuflar os discursos politicamente necessários das entidades competentes, mas verdade desportiva é coisa que nunca existiu, pelo menos não escrita na pedra, preto no branco, imutável de uma jornada para a seguinte.

Durante muitos anos, o futebol encontrou na arbitragem um prolongamento admissível dessas verdades muito discutíveis e quase sempre concorrentes. Esquecendo por momentos os fenómenos de corrupção que terão existido no futebol português, refiro-me neste caso ao árbitro enquanto pessoa dotada de personalidade e até cunho autoral. Não sei precisar quando é que nos convencemos que isto seria uma boa ideia, mas cresci a ouvir falar de árbitros como se fossem maestros e o apito a sua batuta.

Neste universo de subjetividade, o árbitro não era apenas um fiel guardião e cumpridor dos regulamentos da modalidade, mas antes um virtuoso intérprete do texto nas entrelinhas. Depois veio o pós-modernismo, vieram as escutas do Apito Dourado, e o critério do árbitro passou a querer dizer o que nós bem entendêssemos. Se hoje alguém disser que determinada arbitragem foi típica de Artur Soares Dias, estará a aludir a uma certa forma de atuar deste árbitro, um modo de agir perante esta ou aquela situação típica. Tudo isto terá vários entendimentos e quase nenhum será elogioso para o árbitro em questão. O árbitro enquanto intérprete dotado de subjetividade foi morrendo aos poucos, vítima da sua incompetência, permeabilidade, e incapacidade de resistir à natureza algo pantanosa deste tema no imaginário coletivo.

Os anos passaram, o visionamento do jogo tornou-se mais sofisticado, os erros tornaram-se mais flagrantes e a sua análise mais impiedosa, pelo menos até alguém iluminado ter convencido o mundo de que era possível eliminar toda e qualquer subjetividade das decisões da arbitragem. Bastariam umas câmaras estrategicamente posicionadas nas bancadas e de um árbitro escondido sabe Deus onde, munido do poder divino de decidir o destino de um jogo de futebol em função da verdade desportiva. Estão a ver o jogo pelo qual nos apaixonámos violentamente nas décadas anteriores, que em nada precisou deste advento para ser o jogo das nossas vidas? Esse mesmo jogo tinha finalmente sido salvo, vá-se lá saber do quê e de quem, mesmo que quase nenhum de nós tenha pedido socorro.

Foi-nos dito, com relativa humildade, que a tecnologia não era perfeita e que muito haveria a melhorar. Esperámos, felizmente, quase todos sentados, e nada aconteceu. O resultado? Uma nova camada de interpretação em que o decisor, agora livre da pressão do estádio, essa grande tortura - coitadinho - poderá ajuizar de forma rigorosa, objetiva, impoluta, e acima de tudo com a máxima competência. Só há um pequeno problema: os jogos passam e nada disto acontece.

O videoárbitro, escondido não sabemos bem onde, ora vê o que mais ninguém viu, ora fecha os olhos à mais flagrante das situações. Uma coisa é certa: ninguém lhe põe a vista em cima e continuamos à mercê destes intérpretes do jogo, espíritos livres para quem o regulamento parece ser muitas vezes apenas uma vaga inspiração. A sua função clarificadora torna-se assim mais uma manobra de confusão.

O resultado é penalizador para os intervenientes e, creio ser historicamente reconhecido, tende a bafejar aquele que vai à frente, a quem parece ser atribuído um bónus pelo desempenho. Mas é tramado olhar para esse desempenho e imaginá-lo sem o bónus, especialmente quando verificamos que não se trata de um par de siutações, mas de uma sucessão de estranhas decisões, quase todas erradas e quase todas a favor da mesma equipa.

Não é que eu tivesse grande esperança na mitológica verdade desportiva, que desde sempre me pareceu um contra-senso, mas, assim como assim, sempre preferia o tal árbitro - autor que ia a jogo, a quem se admitia que conduzisse o jogo à sua maneira, mas que pisava o relvado a dar a cara pelas decisões. Parecia, apesar de tudo, humano como nós, um dos tais que erram. No lugar desses, temos hoje uns maestros escondidos atrás das máquinas a decretar como verdade indiscutível o que manifestamente é mentira, má fé, omissão, ou incompetência grosseira. E desengane-se quem pensa que isto é mal exclusivo do futebol português. Pelo contrário.

Há gente civilizada a perder as maneiras um pouco por todo o mundo. É mesmo uma pandemia que tomou conta do futebol. Há uns dias, Arteta, confrontado com mais uma decisão surreal do VAR na liga inglesa, disse que em duas décadas de futebol inglês nunca tinha visto nada assim. Não sou adepto do Arsenal e confirmo.

Chega a ser irónico. Apetece-me dizer que, apesar de tudo, todos nos habituámos a ver árbitros em que já sabíamos ao que íamos. Hoje parece tudo menos evidente, sob um pretenso manto de verdade. Pois bem: mentira, má fé, omissão, ou incompetência grosseira. Seja qual for o motivo, o balanço é para mim muito claro. Nunca confiei tão pouco na arbitragem como agora, depois do VAR.