17 novembro 2024, 08:00
«Quero ser treinador de futebol», disse-me José Mourinho
Professor universitário jubilado e filósofo, Manuel Sérgio escreve na Tribuna Livre, um espaço de opinião de A BOLA aberto ao exterior
Professor universitário jubilado e filósofo, Manuel Sérgio escreve na Tribuna Livre, um espaço de opinião de A BOLA aberto ao exterior
É celebérrima esta frase de Pascal (1623-1662): «O coração tem razões que a razão não entende.» Deus, por exemplo (disse ele), só pelo coração se pode compreender, jamais pela razão finita e limitada. Se bem penso, Pascal, tão exímio cientista como filósofo, queria realçar (também) que, no âmbito do conhecimento, não bastam a física e a matemática, pois que a imaginação, a poesia, o sonho são igualmente imprescindíveis. Pascal criticava a hegemonia do racionalismo então em voga.
17 novembro 2024, 08:00
Professor universitário jubilado e filósofo, Manuel Sérgio escreve na Tribuna Livre, um espaço de opinião de A BOLA aberto ao exterior
Quando, em 2012, o mister Jorge Jesus, me convidou para trabalhar com ele, no departamento de futebol do Sport Lisboa e Benfica, endereçou-me um convite que me honrou sobremaneira, não só porque guardava do seu convívio a imagem de um homem bom, prestante e leal, como também levava comigo a certeza de que muito poderia aprender da sua indesmentível competência, como treinador de futebol (o seu currículo assim o confirma). Não foi por isso difícil a minha anuência e, durante treze meses, em diálogo diário e em tom cordial com Jorge Jesus, de maio de 2012 a junho de 2013, pude aumentar o meu exíguo conhecimento das coisas do futebol. Demais, verdadeiramente, só se conhece o que se vive. Esta a primeira lição que colhi do meu trabalho no departamento de futebol do Benfica.
O segundo ponto a realçar é uma verdade, para mim, incontroversa, já há muito tempo: a prática (não podendo dispensá-la embora) é mais importante do que a teoria e a teoria só tem valor se for a teoria de uma determinada prática. «O que é um discurso teórico, ou uma teoria? Entre os gregos, havia a tradição de cada cidade enviar um observador às festas religiosas das outras cidades. Esse observador não participava dessas festas, não interferia nelas, apenas as contemplava, para depois relatar a ocorrência e o significado da sabedoria religiosa que nela se manifestava. Esse observador, em língua grega, era chamado de theorós, de onde deriva a palavra teoria.
Teoria significa aí o resultado de uma contemplação, ou seja, de uma observação em que o observador não interfere na coisa observada.» (José Auri Cunha, Iniciação à Investigação Filosófica, Editora Alínea, S. Paulo, 2013, p. 158). Portanto, o teórico sabe o que vê, não sabe porque faz. E só o fazer (o agir) transforma. À ciência atual, para surgir como um saber operativo e não como um discurso contemplativo, já se chama tecnociência, para que nesta palavra se realce que a ciência moderna integra, simultaneamente, a quantidade e a qualidade. A linguagem matemática é a sua linguagem preferida. E só pode medir-se aqueles aspetos da realidade que são quantificáveis, como, por exemplo, o comprimento, a largura, o peso, etc.
O Jorge Jesus, sempre cortez e, direi mesmo, fraterno, em relação à minha modesta pessoa, não escondia que o embalava o desejo de acentuar que, pelo que na análise do futebol observava, os práticos eram de saber mais fiável do que os teóricos. E rejubilou, quando me ouviu dizer que «a prática é o critério da verdade». Esta frase, aliás, dá-lhe um gozo irreprimível. Demais, a prática é necessária, porque só a prática transforma.
Como já vimos atrás, o discurso da teoria é o de alguém que contempla tão-só. Mas estudar epistemologia, como eu o tenho feito, não é engajar-se num saber teórico, sobre o mais? É que não há prática sem teoria, designadamente no método científico, que faz apelo (bem audível!) a uma constante atitude reflexiva. Como já o aprendi, há muitos anos: a teoria nasce da prática mas, depois, a teoria acompanha a prática e, por fim, perspetiva e antecipa uma nova prática. Na verdade, o essencial da existência humana joga-se no campo do prereflexivo. O vasto mundo da afetividade, a atitude religiosa, a criação metafórica e poética não são racionalmente especulativas, mas precisam da ciência e da filosofia, em proveito de uma compreensão racional. A passagem de um pré-saber ao saber é uma realidade eminentemente teórico-prática.
Num breve clarão de humildade, Jorge Jesus questionou-me: «Então o que tenho eu de fazer?» Adiantei: Ler…» Jorge Jesus não me deixou completar a frase, coçou os pulsos com suavidade e respondeu-me: «É o que eu tenho feito.» Esboçou um sorriso e acrescentou: «Pouco mais tenho feito na minha vida profissional do que ler, ler o que os meus adjuntos fazem e dizem, ler o comportamento dos meus jogadores e dos jogadores dos clubes adversários e ler jogos, os meus e os que a televisão e o computador me dão a conhecer.» Alonguei a memória pelo extenso currículo do Jorge Jesus — um currículo que o coloca a par de qualquer treinador de excecionais recursos e, rendido, balbuciei um comentário: «De facto, já dizia o Paul Feyerabend: se resulta, tudo vale.» E assim rematei: «O meu amigo tem a teoria da sua prática que, por ser altamente competitiva e proporcionar um número incontável de vitórias, merece estudo e respeito. Afinal, também o Jorge Jesus tem muito a ensinar-me.» E, depois de uma gargalhada de prazer pelo que me ouvira, ainda (simpático e generoso) me segredou: «Mas o professor está aqui, neste departamento de futebol, para ser o meu mestre.» E eu: «Querido amigo, não exagere: há momentos, e são muitos, em que me sinto um seu discípulo. Pode crer.»
Vale a pena ler o livro de Paul Feyerabend, Contra o Método (uma obra que, rapidamente, se tornou um livro clássico, ao lado doutros, como A Lógica da Investigação Científica, de Karl Popper e A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn). Neste livro, o autor acentua: não há um método só, para resolver um problema, qualquer que ele seja. A presunção académico-intelectualista, que se julga indiscutível e única, não é única, nem indiscutível…
Um dia, durante um dos nossos habituais almoços, levantou-me ele (bem me lembro) a seguinte interrogação: «Ó professor, diga-me cá, eu às vezes julgo que há necessidade de uma outra linguagem que retrate bem o que é o futebol.» O Jorge Jesus é conhecido pela originalidade da sua linguagem, assente na estrutura engenhosa do seu dia-a-dia mas, francamente, nunca esperei pergunta que tanto me fizesse pensar. Assim lhe respondi, se não estou em erro: «O desporto é um espaço expectante, sempre à espera de ser exprimido pela novidade constante dos sentimentos que desperta. A sua linguagem é o novo que é preciso estudar.» E, de braço estendido, cumprimentei-o: «Parabéns pela sua pergunta.»
No JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), de 2 a 15 de outubro de 2024, em entrevista de Luís Ricardo Duarte, o escritor moçambicano, Mia Couto, diz-nos, a propósito do seu novo livro, A Cegueira do Rio: «Mesmo se quisesse propor uma verdade, só o poderia fazer, usando uma linguagem inventada. A do quotidiano não traduz essa magia, nem o lugar fantástico onde ocorreu este episódio, na fronteira entre mundos, incluindo o da realidade e o da ficção.» E refere que, naquele seu livro, há uma história a várias vozes: «Com cada fala destacada graficamente ao longo do romance, dando indicação de que há línguas e linguagens diversas e a disputar entre si o lugar da narração. Quero mostrar ainda que a escrita não é tão restrita como às vezes se pensa.»
Quem, como eu, privou, ao longo de anos e anos e não só em Portugal, com agentes do futebol (jogadores, dirigentes, médicos, enfermeiros, jornalistas, estudiosos de vários saberes) e isso ocorreu mais vezes do que eu mesmo poderia esperar — escutou como, para exprimir o que sentiam, muitas vezes findavam todo o seu discurso, numa única expressão: «Peço desculpa, se me servi de uma linguagem um bocado livre. É uma linguagem só nossa, do futebol.»
No livro Os mandamentos de Jesus, da autoria de Rui Pedro Braz, pode ler-se: «É na relação com os jogadores e na forma como lhes transmite as suas ideias, que parece residir um dos grandes segredos de Jorge Jesus.» E eu questiono: Não têm a medicina, o direito, as várias engenharias, cada uma das ciências humanas, etc., etc., a sua linguagem própria? Estou a ouvir, indignados, alguns dos leitores desta minha humilde prosa: «Mas quer comparar o Jorge Jesus a quem?...»
Fui júri em vários doutoramentos, em Faculdades de Desporto, em Portugal, Espanha, Brasil e Chile. Fui orador em dezenas e dezenas de congressos e colóquios. E não só de Desporto, também de Filosofia e Medicina. Medicina? É verdade: trabalhei na Direção-Geral de Apoio Médico, como adjunto do diretor-geral, o médico, especialista em cirurgia geral, Dr. Aníbal Silva e Costa — o médico (é bom não esquecê-lo) que mais saber e energias exauriu por que a medicina desportiva fosse reconhecida como especialidade médica.
Pois o Dr. Aníbal, quando, um dia, me viu a ler O Nascimento da Clínica, de Michel Foucault, e após um interrogatório, num almoço, no Hotel Tivoli, até ao estrangeiro me enviou, como se eu médico fosse, a dois congressos médicos, para defender o tema: O Racionalismo na Medicina e na Educação Física. Isto, para dizer que aprendi (repito: não ensinei, aprendi) com muita gente e de alta estirpe tecnocientífica e, embora doente e a caminho dos 92 anos de idade, julgo poder acrescentar que, sem o convívio que ainda hoje tenho com o Jorge Jesus, não entenderia, de forma tão explícita, nem um jogo de futebol… nem o «tudo vale» de Paul Feyerabend.
Se fosse um escritor como Ramalho Ortigão, principalmente no seu livro Costumes e Perfis, eu poderia traçar-vos, com arte e celeridade, um profissional de futebol que não sabe de futebol porque muito estudou sobre este desporto que, desde criança, me delicia. Este homem sabe de futebol, porque o ama. É verdade: não conheço ninguém que mais ame o futebol do que o Jorge Jesus. E, porque o ama, dele sabe como poucos. E, porque muito o ama, por vezes, nem palavras tem para exprimir o que sente. Ele é um treinador incomparável. Está por fazer-se uma tese de doutoramento sobre um treinador que nunca leu um livro sobre futebol e sabe de futebol como um expert.
No futebol altamente competitivo, não sabe de futebol quem muito leu, mas quem fez currículo… na prática! Aos olhos do adepto (e não só) o bom treinador não é o que lê muito — é o que faz bem! Como o Jorge Jesus, que só tem razões do coração, porque as razões da razão não lhe chegam, para fazer o que faz e como faz. Quero eu então dizer que o muito amor dispensa um estudo sério e rigoroso? Quero dizer tão-só que quem ama até vê coisas que não estão nos livros…