Joguem bonito e nada nos faltará

Joguem bonito e nada nos faltará

OPINIÃO28.03.202306:30

Preparemo-nos para perder com estilo, façamos dessa a nossa mitologia, e talvez com isso aprendamos a ganhar mais e melhor

NÃO fui dos que se opuseram à chegada de Roberto Martínez. Há muito que a Seleção pedia uma nova equipa técnica que trouxesse outra ideia de jogo, outro estilo de liderança e uma ambição renovada. Uma obsessão desmesurada com a mudança pode por vezes configurar uma patologia, mas o seu adiamento eterno também pode ser fatal. Além disso, se é verdade que o espanhol não trazia títulos na bagagem, Roberto Martínez trouxe ainda assim memórias de um futebol atrativo que, mesmo sendo um pouco longínquas, fizeram de mim um fã circunstancial da seleção da Bélgica.

Roberto Martínez não é o primeiro seleccionador nacional que pouco mais ganhou no futebol sénior, e isso não me parece ser um problema. A Seleção portuguesa também é conhecida por ter perdido muito mais vezes do que ganhou até hoje, mas nem por isso deixou de fazer fãs no mundo inteiro, e Martínez parece capaz de somar a esse capital. Esta capacidade de conquistar adeptos, mesmo quando não se ganha, é especialmente importante, porque Portugal vai continuar a perder mais vezes do que ganha. Resta saber como é que isso acontecerá, e se teremos algum orgulho quando virmos os marroquinos celebrarem na nossa vez.

Note-se que o meu interesse na Bélgica é moderado a baixo, mas lembro-me de alguns jogos da seleção daquele país, talvez com o melhor grupo de jogadores da sua história, em que a equipa me pareceu capaz de atropelar qualquer adversário. Fê-lo praticando um estilo de futebol em que a prioridade era chegar à baliza rapidamente e com uma certa dose de virtuosismo. Fê-lo com rapidez na circulação de bola, fê-lo com intensidade e conseguiu apresentar diferentes formas de chegar à baliza adversária. Não era apenas uma equipa que chegava muitas vezes à baliza adversária, mas uma equipa que o fazia de forma vistosa.

A mudança que chegou com Martínez era há muito necessária porque o futebol de seleções, talvez ainda mais do que o futebol de clubes, cumpre uma função social que tem sido parcialmente esquecida nos últimos anos em Portugal. O futebol tem que ser uma fonte de entretenimento, mais do que uma fonte de vitórias. A obsessão com as vitórias, como se fosse um direito nisso, são uma patetice quando falamos de uma seleção como a portuguesa. O orgulho pode estar na forma como vencemos, o que aconteceu duas vezes na história (sem sabermos rigorosamente como), mas deve ser ainda mais vincado na forma como saímos derrotados, o que acontece quase sempre. Devemos cuidar especialmente desses momentos, por serem mais frequentes. Eu gostei da Seleção de 1996, que ainda hoje está no meu top, porque jogou um futebol esteticamente mais atrativo do que qualquer outra, mesmo que ninguém, excepto alguns milhões de portugueses inebriados, achasse aquele futebol capaz de levantar um troféu. Não consigo dizer-vos com certeza que o objetivo da Seleção de 1996 foi antes de mais jogar bonito e só depois ganhar, mas gosto de pensar que sim. Gostei da Seleção de 2000 porque voltou a privilegiar o bom futebol e a gentil habilidade de muitos dos nossos craques, e ainda nos deu a cereja no topo do bolo: um final trágico em que pudemos dizer que fomos roubados. Depois veio 2004 e a maior desilusão, até sentirmos tudo isto vingado em 2016, um engano maravilhoso que nos convenceu de que essa era afinal a nossa feliz sina.

E agora parece ser isto que se pede, como se jogar um futebol entusiasmante ou colocar os melhores jogadores em campo não fossem prioridades mais importantes. Nesse sentido, os primeiros jogos de Martínez tiveram coisas boas e coisas más. O futebol mostrou já, em pouco tempo, coisas mais interessantes do que muitas exibições da era anterior, mesmo contra adversários fracos. A convocatória mostrou a maioria dos nomes certos, mas uma preocupante limitação no momento de rematar à baliza. É inexplicável que Roberto Martínez insista em Cristiano Ronaldo a titular e desfaça a motivação de Gonçalo Ramos no momento mais fulgurante da sua carreira. O meu pedido ao selecionador nacional é que, em relação a esta matéria, seja mais Ten Hag e menos Fernando Santos.

Ser capaz de cuidar do fatal destino de uma seleção como a portuguesa, tomando as decisões certas que a habilitem a cumprir a sua mais importante função social - entreter-nos - pode eventualmente aproximar-nos dos tais troféus que tanto reclamamos. A obsessão do futebol moderno em formar vencedores ignora a ideia de que há vencidos mais dignos e memoráveis do que muitos vencedores. Eu espero que esta Seleção me garanta, primeiro, que vou ter mais orgulho nas derrotas, ou que vou viver uma desilusão maior, ou que nos vão dar motivos para criticarmos a arbitragem, mesmo que esta decida bem. Levantar taças a qualquer custo? Joguem para ser recordados, independentemente do resultado. Joguem bonito e nada nos faltará. Não acredito que Portugal vá ganhar uma competição em que todos vejam o nosso país como o mais forte candidato à vitória, ou numa ocasião em que toda a gente bata no peito a dizer que desta vez é que vai ser como se fosse um direito divino. Preparemo-nos antes para perder com estilo, tornemos as nossas derrotas mais interessantes, façamos dessa a nossa mitologia, e, quem sabe, talvez com isso aprendamos a ganhar mais e melhor.