Infância em risco
Não conhecemos outra paixão como esta, mas às vezes parece-me mais triste sina do que bênção
H Á uns dias um amigo perguntava-me se os meus filhos de 5 e 7 anos gostavam de futebol, se já acompanhavam o Benfica e se eram ferrenhos. Pareceu-me surpreendido quando lhe expliquei que os miúdos até gostam de pontapear uma bola mas que, apesar de serem sócios desde o dia em que nasceram, ligam pouco ou nada ao jogo jogado - e que o pai não tem feito muito para os persuadir a gostar mais da coisa. O mais novo diz que o jogador favorito dele é o Jonas, mas na verdade não se lembra de ter visto o Jonas. Só diz porque o pai lhe pede (e ainda bem que o faz).
Eu próprio sinto alguma estranheza quando penso nisto. Lembro-me muito bem de ter a idade deles e de ver futebol sentado ao lado do meu pai. Lembro-me do entusiasmo que senti, da sensação de estar a assistir a uma coisa especial. Nunca mais fui indiferente a um jogo de futebol. Durante muitos anos, fechei-me no quarto a inventar relatos de jogos na rádio (ainda hoje ouço relatos no carro e sinto inveja). Gravei resumos do Domingo Desportivo porque achava que um dia iria precisar deles (e revi alguns). Lembro-me como se fosse ontem de contar os dias até chegarem os míticos Cadernos d’A BOLA. As cadernetas davam muito trabalho a completar e esta já trazia os cromos todos. Usava o dinheiro do almoço para comprar os desportivos no quiosque e lia tudo, do Duda Guennes ao Homero Serpa, passando pelo Alfredo Farinha ou pelo Carlos Pinhão (mesmo que nem sempre percebesse o que diziam). Escondia os jornais dos meus pais (achava eu) para eles acharem que tinha almoçado bem. Isto foi tudo até aos meus 10 anos. Desde então, e até hoje, de cada vez que uma bola saiu redonda do meu pé - no recreio, num jardim, num relvado a sério, na futebolada semanal, na praia, no escritório ou num corredor lá em casa - imaginei por breves instantes que também eu talvez pudesse ter sido ídolo. E, chegado a estas páginas, decidi dar a um espaço de crónicas minhas um nome inspirado por Javier Marias, escritor espanhol que falou do futebol como «a recuperação semanal da infância».
É estranho por isso que um futebol a quem devo tanta infância e tantas boas recordações, a quem agradeço inclusivamente as infelicidades e as angústias, me pareça às vezes tão pouco recomendável para os meus próprios filhos. É claro que a probabilidades de eles se virem a entusiasmar com isto é enorme. É claro que há uma ideia de Benfica que eles já compreendem, tanto no presente como na sua dimensão histórica. Aliás, o futebol é para eles essencialmente isso, reconhecer a grandeza do Benfica e perguntar ao pai se o Benfica está bem ou se está mal. No entanto, há uma pequena parte de mim que se sente um mau pai por insistir em explicar a duas crianças o interesse por este desporto que eu próprio considero pouco racional e cada vez menos saudável. Podia aplicar a velha máxima o problema não és tu, sou eu, mas não é verdade. O problema é mesmo deste futebol e de todos nós que, de uma forma ou de outra, o vamos validando porque nascemos, vivemos e morremos todos aqui. Não conhecemos outra paixão como esta, mas às vezes parece-me mais triste sina do que bênção.
Os episódios de violência física que se repetem ao longo dos anos e não raras vezes fazem vítimas mortais, a violência verbal usada por quase todos os intervenientes, o clima de ameaça a que muitos dos intervenientes são sujeitos, os episódios de racismo que se repetem em bancadas de norte a sul do país, o antijogo que faz de muitos jogos da nossa Liga uma anedota a nível mundial, a premiação de quem ludibria o árbitro, a falta de cultura desportiva na celebração da vitória ou na aceitação da derrota, e a incompetência grosseira aparentemente aceite como parte do espetáculo. Eu sei, somos um país que produz mais futebolistas talentosos por metro quadrado do que qualquer outro no mundo. Mas, por cada craque que desponta no futebol português, alguma coisa acontece em dobro que deveria cobrir de vergonha quem lidera este futebol.
Claro que o futebol é muitas outras coisas, mas como explicar a duas crianças uma paixão frequentemente tão estúpida como esta? Talvez o segredo esteja em protegê-los desse lado e mostrar-lhes apenas o jogo em si, mas também isso é difícil. Há um par de dias revíamos os lances do clássico de sábado e dei por mim a tentar explicar-lhes um fora de jogo de dois centímetros sem recorrer a outro enquadramento que não o das regras, por muito bizarro que seja este episódio quando olhamos para as imagens do lance e procuramos interpretar as regras. Acho que os miúdos ficaram tão confusos como eu.
- Porque é que não foi golo?
- Porque o árbitro disse que não podia ser.
- Mas porquê?
- Porque o Darwin estava fora de jogo.
- Diz ali dois centímetros. Foi isso?
- Sim.
- Estava fora de jogo por dois centímetros?
- Parece que sim.
- Como é que o árbitro conseguiu ver isso?
- Bem, há um árbitro fora do estádio que consegue ver o jogo com muitas câmaras diferentes e ajuda o árbitro que está dentro do relvado.
- OK, mas como é que eles viram dois centímetros [aproxima o polegar e o indicador para mostrar o que são dois centímetros]?
- Também não sei, filho…
- Eu acho que não conseguia ver.
- Eu também não, filho.
- Então não foi golo.
- Não.
- OK, então o Benfica perdeu.
- Sim, foi mais ou menos isso.
- O Darwin deve ter ficado chateado…
- Pois… Não foi só ele, filho.
Infelizmente o resumo do jogo prosseguiu e a seguir fui também obrigado a explicar ao meu filho porque é que os jogadores da equipa adversária correram mais do que os nossos e marcaram o golo que lhes deu a vitória. Não foi fácil, em especial quando o miúdo reparou que até o árbitro correu mais do que alguns jogadores do Benfica. Enfim. Entre a inaptidão demonstrada em campo e o triste espetáculo que é este futebol, não sei se há infância que sobreviva a isto. Talvez precisemos de entrar na idade adulta.