História de um casamento
Dividimos casa e mal falamos um com o outro. Há uma pequeníssima parte de nós que, às vezes, com a luz certa, ainda acredita na reconciliação
As redes sociais têm um hábito, às vezes saudável, de nos recordar coisas que dissemos num momento de confusão existencial, oportunismo, fragilidade ou mera ingenuidade. Eu, que cada vez gosto menos de redes sociais, opto por ser perseguido pela minha própria memória. O arquivista que há em mim lembra-me, a cada 3 dias, de um texto da minha autoria publicado neste jornal em que considerei positivo o anúncio da renovação do contrato de Roger Schmidt. No meu caso, foi mesmo a ingenuidade de um adepto que considerava ser possível acreditar que o afamado Rogerball regressaria mais dia menos dia, apesar de naquela altura o futebol massacrante importado com Schmidt já não ser exatamente uma realidade.
A paixão tem destas coisas. Às vezes convence-nos de que é amor aquilo que afinal não passava de uma paixão mais palavrosa. Não sei quantas pessoas terão a exata noção disto, mas estimo que a população portuguesa seja suficientemente experimentada para compreender o que quero dizer, considerando que metade dos casamentos em Portugal resultam em divórcio. É da vida equivocarmo-nos e o Instituto Nacional de Estatística confirma.
Para ser absolutamente sincero, não sei precisar quando é que o laço entre os adeptos e Roger Schmidt se começou a quebrar, mas consigo lembrar-me de demasiadas situações em que percebi que o treinador por quem nos tínhamos apaixonado era afinal uma pessoa diferente. Há um episódio na série Seinfeld que explica muito bem esta situação: Jerry, a personagem principal, deixa-se enamorar por uma mulher de traços finos, sorriso contagiante e charme desarmante.
A coisa até parece correr bem quando, de repente, como sempre acontece com todas as mulheres que este conhece, Jerry encontra um problema: a beleza desta nova paixoneta tem afinal duas caras. Dependendo do tipo de luz que incide sobre o rosto dela, Jerry ora vê uma mulher linda ora vê uma mulher algo sombria. Admito desde já que a caracterização de uma mulher exclusivamente com base nestes traços físicos pode colocar-me em apuros, mas o parágrafo já vai longo e por isso vou arriscar. Aquilo que antes parecia um rosto à medida do gosto de Jerry é agora um desafio de iluminação. O efeito cómico é atingido quando Jerry passa a interagir com a mulher em função do ambiente de iluminação, por forma a garantir que apenas vê o seu lado mais bonito.
O resultado é revelador porque nos explica um pouco daquilo que eu, e acredito, muitos benfiquistas, temos tentado fazer. Há muito que percebemos que a beleza da era Roger Schmidt depende um pouco do tipo de luz que incide sobre o treinador do Benfica. Fomos tentando condicionar a nossa perspetiva para que víssemos o seu lado positivo, como é exemplo disso a elevadíssima percentagem de vitórias ao serviço do clube. O problema é quando verificamos que o futebol praticado se vai degradando aos poucos e torna tudo muito mais feio. É certo que continuamos a ter individualidades para contrariar todas as adversidades esta época, mas começo a estar bastante mais certo da capacidade dessas individualidades do que da competência do treinador para liderar e organizar essas individualidades em forma de uma equipa à imagem do Benfica. Em suma, para onde quer que olhe, seja qual for a luz, já não consigo ignorar o lado negativo. Tornou-se a única coisa que vejo.
No domingo passado, no Estádio do Dragão, talvez tenhamos dado o caso como perdido. Pelo terceiro jogo consecutivo, a equipa pareceu incapaz de lidar com a pressão do adversário, incapaz de reagir à adversidade, e, neste último caso, incapaz de libertar as suas individualidades para fazerem aquilo que têm feito melhor: desbloquear os jogos que, manifestamente, as ideias de Roger Schmidt não são capazes de resolver. Ao longo de largos meses, talvez mais de 1 ano, tenho refletido nestes textos a minha gestão desse sentimento de apreensão em relação a Roger Schmidt, repetindo mantras com a esperança de que as nuvens se dissipem e aquele cometa em forma de ideia de futebol que vimos em 2022/2023 volte a aproximar-se do Estádio da Luz. A saber: é preciso mais tempo para formar uma nova equipa e retomar o nível anterior; não é como começa, é como acaba; quem apostou em António Silva e João Neves merece que eu aposte nele; apesar de tudo temos controlado os jogos; quando é a doer alguém na equipa aparece para resolver e no próximo jogo não será diferente.
O problema dos mantras é quando os repetimos tantas vezes que caducam e, ao invés de aumentarem o foco e a serenidade, são contrariados pela evidência. Talvez por isso me tenha irritado tanto que as primeiras palavras de Roger Schmidt não tenham sido um pedido de desculpas dirigido aos adeptos do Benfica, apesar da sinceridade com que admitiu que a equipa fora pior do primeiro ao último minuto, ou que a responsabilidade é toda dele. Percebo que seja uma daquelas frases que fica bem a um treinador dizer depois de uma derrota, mas receio que neste caso seja mesmo verdade. E irritou-me ainda mais a tentativa de Schmidt em explicar, com uma pretensão pedagógica que não lhe reconheço aos dias de hoje, que às vezes temos de aceitar que as coisas não correm bem. Admito que essa máxima sirva para muitas ocasiões, mas dificilmente vai apaziguar adeptos do Sport Lisboa e Benfica.
É esta a história de um namoro que deu em casamento. Agora vem a parte mais difícil. Dividimos casa e mal falamos um com o outro. Há uma pequeníssima parte de nós que às vezes, com a luz certa, ainda acredita na reconciliação, mas sempre que tentamos olhar com mais atenção damos por nós a ver o sarilho em que nos metemos.
Eu poderia especular sobre o que acontece depois, mas sirvo-me dos dados ao nosso dispor. O Instituto Nacional de Estatística sabe muito bem como isto acaba.