Há relvados, jogadores, árbitros e bola. Falta o futebol
Para citar uma frase comum em Espanha, poderia dizê-lo mais alto, mas não mais claro: «Na 1.ª Divisão joga-se a saúde por causa do dinheiro, na 2.ª Divisão compensa-se com algum dinheiro não se jogar por causa da saúde”. Isto escreveu antes de ontem, aqui por estas páginas, Bagão Félix. Acho a síntese feliz, condizente, aliás, com o nome de quem a escreveu.
O que vai acontecer no mês que vem não é exatamente futebol. Falta-lhe a alma. Por necessidades económicas indiscutíveis, é uma espécie de frankenstein; algo construído para ser como, mas que nunca consegue ser o que pretende imitar. Aliás, propostas para ser ainda mais diferente já foram feitas, por exemplo, pelo sindicato inglês de jogadores que pretende reduzir o tempo de jogo, em função da sobrecarga que vai existir.
No entanto, apesar de pensar que idealmente este campeonato deveria ter sido cancelado, quero deixar claro que compreendo inteiramente o estado de necessidade dos clubes e da Liga. Do que ninguém me convence é que, seja quem for o campeão e seja quem for que desça à II Liga, possamos considerar isto um campeonato normal e os resultados fruto de uma normal justiça desportiva (se é que tal existe na nossa Liga). Nunca será.
Há clubes a jogar sempre fora (espero que não se lembrem de alguns para jogar em casa); há jogadores que ficarão longe das suas casas; há de tudo, menos aquilo que faz o essencial dos jogos: o público, com os seus méritos e as suas injustiça; os seus cânticos e os seus assobios… até os insultos (desde que moderados) farão falta - e pergunto ao Duarte Gomes como poderá um árbitro viver sem eles.
Esta falta de algo tão essencial ao futebol como é o público (direi o mesmo de uma prova de ciclismo, de atletismo, enfim de qualquer desporto, como de qualquer espetáculo, seja ele o cinema, o teatro, ou a tourada) é mais do que estranha. É algo que não faz sentido, porque lhe retira a essência do acontecimento.
Para o Sporting pode, de certo modo, ser benéfico. Pelo menos, livra-se daqueles adeptos das claques que pareciam torcer sempre pelo clube contrário, dedicando-se a atirar tochas aos nossos jogadores e assobiando-os ao mais pequeno erro. No entanto, o fator casa acaba sempre por contar, ainda que o Benfica e o Rio Ave sejam dois exemplos de clubes com melhor registo em estádios alheios de que nos próprios.
Os que chegam
ONacional e o Farense foram promovidos à I Liga sem que mais jogos sem realizem. Também entendo a decisão, mas ela não deixa de ter os seus quês. Matematicamente, até ao 16.º lugar todos ainda poderiam chegar ao primeiro ou segundo lugares, embora tal fosse muito improvável para a maioria deles. Ou seja, salvo o Cova da Piedade e o Casa Pia, que aliás descem para o Campeonato de Portugal, todos os outros clubes poderiam teoricamente, nas 10 jornadas que faltam, alcançar os lugares que os poriam na I Divisão. Mas, se isto era quase impossível para quase todos, para Feirense, Estoril e Mafra não era algo nunca visto. O Feirense está a seis pontos do segundo (o Farense) e os outros dois clubes a nove. Situação muito diferente dos 13 e 16 pontos que separam, respetivamente, Braga e Sporting do segundo lugar da I Liga.
É, pois, natural que um clima de contestação esteja a nascer em clubes da II Liga, como é o caso do Académico de Viseu (falo deste por ser o que mais me diz) que se sente discriminado e injustiçado por não o deixarem jogar o que falta. Em 7.º lugar e a 14 pontos do Farense, os viseenses não teriam muitas hipóteses de voltar a um lugar (a I Divisão) no qual nunca se sentiram seguros. Mas se há coisa que o vírus veio demonstrar (e infelizmente não apenas no futebol, que ainda seria o menos) é que não existe igualdade. Há os mais fortes e os mais fracos. Os mais fortes aguentam-se melhor e os mais fracos (embora compensados monetariamente com dinheiro disponibilizado pela FPF e por clubes da I Liga), ficam a olhar.
Tempos extraordinários requerem medidas extraordinárias, é certo. Mas nem por isso teremos de ocultar que são injustas. Como injusta, também é a subida à II Liga do Arouca e do Vizela, por troca com Casa Pia e Cova da Piedade (curiosamente dois clubes do Norte por dois da zona da Grande Lisboa, o que vai sendo hábito).
Na verdade, a única coisa que me agrada nisto tudo é o facto de ainda podermos ver uns simulacros de jogos (já nos avisaram que não vão ser tão bons como vinham a ser, o que significa que serão péssimos, pois maus já eram, salvo raras exceções). Também folgo em verificar que nenhuma cabeça iluminada se lembrou do velho truque do alargamento das Ligas para acomodar subidas sem ninguém descer, ou manigâncias do estilo. Em minha opinião precisávamos de campeonatos com menos clubes por escalão e talvez esta fosse uma oportunidade para o fazer. Mas isto, já se sabe, é sonhar. Veja-se que a nova III Liga, ontem anunciada para a época 2021/2022, vai ter 24 clubes e, no ano seguinte, 20… É obra!
Por falar em desigualdade
Omodo como deve passar a ser gerido o futebol, não só em Portugal, mas no espaço europeu ou mesmo em todo o mundo, vai ter de mudar. Ficando-nos por aquilo que nos diz respeito, é óbvio que vão continuar as dificuldades desta autêntica indústria (que neste momento se assume até mais como indústria do que como desporto, como se vê pelas soluções encontradas). Só com muita sorte não teremos uma segunda vaga da pandemia no outono. Sorte, significa até lá os laboratórios e o conjunto dos cientistas que em rede e em todo o mundo colaboram conseguirem uma vacina ou um medicamento eficaz.
Ontem mesmo, Frederico Varandas vaticinava que para a próxima época os estádios, provavelmente, só poderiam ter um quarto da capacidade de espetadores. Se para muitos jogos do nosso campeonato isso não tem, infelizmente, qualquer importância, porque as audiências ao vivo não existem, para os maiores clubes é catastrófico. Ora há que entender que nenhum clube, por maior que seja, vive sem os outros. O Benfica precisa do Marítimo, como o Porto do Paços de Ferreira ou o Sporting do Tondela. Não há campeonatos, nem pode haver, a três ou quatro clubes, nem o futebol se desenvolve sem os clubes médios e mais pequenos. Desde logo na formação de jogadores e na passagem de jogadores formados nos grandes por equipas menos poderosas para poderem evoluir. Enfim, todos estão inelutavelmente ligados.
Por isso mesmo, as propostas de divisão das receitas por todos os intervenientes de uma Liga, como já tantas vezes foi referido, parece mais importante do que nunca. Todos os esquemas de fair-play financeiro têm de ser seriamente postos em prática e as verbas que a UEFA distribui pela Liga dos Campeões e mesmo pela Liga Europa (que são uma pequeníssima parcela) deveriam chegar às próprias Ligas e a todos os que nela participam.
Um teste, para já, é ver o que fará a FPF a propósito de verbas, com a anunciada 3.ª Liga, competição que vai determinar quem acede aos campeonatos profissionais tutelados pela Liga.