OPINIÃO Futebol e sociedade: é hora de assobiar para a frente e não para o lado
O Mundo ameaça voltar à Idade Média; o futebol mantém dificuldades para sair dela
Uma das mais perigosas e sinistras características do ser humano é a capacidade de não querer ver o que se passa à sua volta.
Sucedem-se exemplos de racismo, intolerância, xenofobia, misoginia e falta de civismo e boa parte de nós assobia para o lado, até porque há sempre um exemplo pior que o nosso nas notícias de todos os dias.
Felizmente há quem não se cale perante o descambar de um Mundo marcado pela guerra, pela destruição do planeta, pela desigualdade e pela ascensão totalitarista das extremas direitas, devidamente acompanhadas pelo retomar de uma influência dogmático-religiosa que faz lembrar a Idade Média, aka das Trevas.
Felizmente há quem traga os assuntos a público. A boa notícia é que tal papel não cabe apenas a políticos, jovens entusiastas, professores fechados em torres dos sábios ou pregadores de esquina.
Danilo, lateral da seleção brasileira que passou pelo FC Porto, foi absolutamente exemplar quando desafiado a abordar a polémica de dois antigos companheiros condenados por violação. Não os atacou, mas dispensou a defesa bacoca e corporativista que caracteriza os grupos intolerantes, neste caso o dos homens.
«As mulheres vivem provações e pensamentos que nós, enquanto homens, não vivemos. Pensar com que roupa vão sair ou não, por julgamento dos outros, ou por supostamente abrir um precedente para qualquer coisa.»
Poucos dias depois, um compatriota corajoso, homem feito apesar dos tenros 23 anos, chorou em público quando confrontado com um problema que o afeta há meses e ele, em boa verdade, nunca calou: a cor da pele. Vinícius Jr., craque do Real Madrid, confessou ter cada vez menos vontade de jogar futebol por ser alvo de atos próprios da Idade das Trevas, mas é precisamente nesta luta contra o racismo que encontra forças para continuar. Acontece em Espanha, é aqui ao lado mas ainda fica longe. Ah, espera! Também acontece por cá... Se calhar o mais confortável é assobiarmos para o lado.
Outras coisas que acontecem por cá, e pelos vistos também em Espanha, são exemplos de pais, familiares e amigos que assistem a jogos de crianças como se a vitória num jogo de futebol fosse tão importante quanto a resistência de povos fracos perante invasores tirânicos.
O caso de Sérgio Conceição terá sido empolado. O que se sabe, dois dias depois, indica que o treinador do FC Porto tem razão na essência da história. Mas ela, a história, não deixa de ficar marcada pelo erro de princípio de um pai confrontar um árbitro a propósito de alegado erro num jogo de sub-9.
Por via torta, porém, esta história chama a atenção para um problema grave de violência — verbal, física e psicológica — vivida semanalmente por crianças, treinadores e árbitros em muitos campos deste País.
O futebol e o desporto não diferem de outras atividades, pelo que serão sempre espelhos da(s) sociedade(s) e dos tempos que vivemos.
E estes tempos não estão fáceis. Quase 80 anos depois da Segunda Guerra Mundial vive-se sob a ameaça de uma terceira, que seria certamente a última. Se não vier a Grande Guerra, o próprio Homem encarregar-se-á de destruir o que ainda resta do Planeta.
Cenários catastrofistas à parte, há algo que todos podemos fazer. Assobiar para a frente, por exemplo, em vez de assobiar para o lado.
Enquanto pactuarmos com a intolerância, o racismo, o abuso e a violência continuaremos a caminhar e a assobiar na direção errada.