Fredrik, aos poucos um de nós

OPINIÃO28.02.202305:30

Espero que Aursnes aprenda a nossa língua e se apaixone por nós como nós nos vamos apaixonando por ele

PARTE da minha vida foi passada a escrever para outra publicação desportiva, na qual analisei individualmente as exibições dos jogadores do Benfica, jogo após jogo, durante cinco épocas. Foi uma das coisas mais divertidas e cansativas que já fiz, mas tive a sorte de começar essa aventura com a análise individual da seleção que venceu o Euro em 2016 e celebrar dois campeonatos do Benfica. 

Um dos atletas que mais gostei de avaliar, nas boas e nas más exibições, foi Ljubomir Fejsa. O centro-campista sérvio nunca foi o mais talentoso dos atletas, mas raras foram as ocasiões em que não deixou lá dentro tudo aquilo que os adeptos esperavam. Nem sempre as coisas lhe saíam bem, mas toda a gente percebia a função de Fejsa dentro de campo e toda a gente lhe reconhecia competência, mas também a solidariedade necessária para alguém a quem não raras vezes era confiada a tarefa de tapar os buracos criados pelas deambulações de outros jogadores.

Os anos foram passando e confirmaram que tudo isto tinha uma razão de ser: Fejsa tornou-se um dos atletas mais titulados do Benfica neste século, aprendeu a falar português, integrou-se no clube e no País. Tornou-se uma referência para os adeptos. Vendeu muitas camisolas e houve seguramente quem arriscasse um corte de cabelo similar ao dele, ignorando por sua conta e risco que só Fejsa tinha o capital social para usar um coque masculino durante tanto tempo e continuar a ser um membro respeitado da comunidade. E foi mesmo.
Fejsa tornou-se um dos nossos, foi acarinhado por todos, e, mesmo depois de várias lesões e períodos menos conseguidos, continuou a representar o clube de forma abnegada e apaixonada. Perdeu espaço no plantel e tornou-se uma carta fora do baralho, mas nada mudou no seu íntimo.

Na sua última entrevista à BTV enquanto jogador do Benfica, foi notória a sua dificuldade em explicar o significado dos anos passados no Benfica. Vale a pena rever no YouTube este momento comovente de um adulto que chora copiosamente feliz pelo que viveu e triste pelo enorme clube que se prepara para abandonar enquanto jogador, mas não enquanto adepto.

TODOS nós sabemos que a relação de um futebolista moderno com o seu trabalho é severamente influenciada no sentido de privilegiar o dinheiro em detrimento da paixão clubística ou do amor à camisola. A ambição profissional e financeira, ou a condição social de quem muitas vezes vem de baixo, não é um exclusivo dos futebolistas, e creio que a maioria de nós, os que não nasceram ricos, sabe isso. 

Muitos de nós compreenderam portanto a decisão de Enzo Fernandez e acredito que a maioria decidisse da mesma forma, mesmo que algum excesso de lirismo agora o impeça de admitir. No fundo, sempre que um atleta estrangeiro chega ao Benfica, a expectativa natural é de que mais cedo ou mais tarde, se a coisa correr bem ao jogador, acabe por correr mal e ele nos deixe para rumar a outras paragens. Mas, por muito encanto que nos tragam os Enzos predestinados a outras ligas, é quando os estrangeiros ficam connosco que mais nos apaixonamos. 

HÁ muitos motivos para sorrir quando olhamos para o Benfica desta época, da equipa técnica à união do plantel, da esperança renovada dos adeptos à competência evidenciada por quem hoje lidera o projeto desportivo, do orgulho na formação ao entusiasmo com os craques, da confiança dos jogadores mais utilizados à entrega dos menos utilizados, entre muitas outras coisas que justificam plenamente a vantagem pontual na liga e a prestação meritória na Liga dos Campeões.

Mas há também uma sensação, excitante, de que tudo isto é só o início. Para lá da convicção cada vez mais forte de que esta época pode vir a terminar de uma forma muito feliz, há uma esperança de que a estabilidade sentida, a que parece dominar os 90 minutos de cada jogo mas também a forma como nos comportamos fora deste, que talvez essa estabilidade tenha chegado para ficar por muito tempo.

LEMBREI-ME de Fejsa quando pensei num jogador do atual plantel, o discreto mas decisivo Fredrik Aursnes, um atleta norueguês que chegou da Holanda com 27 anos de idade para se tornar rapidamente um dos melhores jogadores do Benfica, e talvez o meu favorito esta época.

Não há nada de extraordinariamente vistoso na maioria das ações realizadas por Aursnes ao longo de um jogo, mas é quase tudo norteado por um bom senso ao alcance de poucos. Não é o maior virtuoso do plantel, não será o mais rápido e não é o mais atlético, no entanto é quase sempre excelente em todos estes capítulos.

A bola nunca passa muito tempo nos seus pés, mas acima de tudo nunca passa tempo a mais. Joga muitíssimo bem, mas acima de tudo joga onde quiserem que ele jogue. E joga sempre como se nada disto fosse sobre ele. Joga como se tudo isto fosse sobre nós, sobre o Benfica. Assim que a bola chega ao pé ou um adversário cai no seu raio de ação, Fredrik demonstra a sua vocação: ser um intérprete do sonho dos adeptos.

NÃO culpo os predestinados por chamarem a si tanta atenção, mas há algo de muito bonito em ver um jogador com o talento de Aursnes jogar com a frieza de quem, apesar das suas muitas qualidades, está ali para executar um plano e não se sobrepor a este. Esse foco nunca o impediu de participar nas mais bonitas iniciativas ofensivas ou defensivas da equipa, mas o seu contributo é superior à soma das partes.

Em poucos meses, o futebol de Aursnes tornou-se uma das principais garantias de equilíbrio na organização da equipa defender e a atacar. A dimensão estética nunca é ignorada, mas a subtileza com que joga talvez o torne um pouco menos apetecível para os olheiros do YouTube, esses anjos da morte que montam compilações de melhores momentos a torcer pelo pior momento do adepto, o dia em que teremos de nos despedir de um Aursnes porque o dinheiro assim o ditou. 

MAS a prospeção do adepto permite ver coisas diferentes. Admito estar enganado, mas os meus olhos conseguem ver alguém que veio para ficar. Talvez se deva a uma forma de estar nórdica, talvez seja só mesmo dele, mas há em Fredrik Aursnes a presença e a discrição de quem é hoje do Benfica e não apenas um atleta do clube, de quem está onde sempre quis estar, mesmo que até há uns meses não sonhasse com isso. 

Ainda não se sentirá em casa, mas compete-nos também retribuir para que esse conforto chegue. Espero que aprenda a nossa língua, que se apaixone por nós como nós nos vamos apaixonando por ele, que cumpra este contrato e quem sabe mais outro, que vença quase tudo o que houver para vencer como o Ljubomir, e que fique connosco até ser velhinho, até as pernas não aguentarem mais, para um dia, finalmente, se despedir em lágrimas, triste pelo final mas feliz pelo muito que viveu e por ser, agora, mais um de nós. Alguns dirão que me deixo levar, que é só mais um jogador. Mas cada um de nós é olheiro à sua maneira. Tenho para mim que nele encontramos muito do Benfica a que devemos aspirar nos próximos anos.