OPINIÃO Explica-nos com futebol
«Selvagem e sentimental», por Vasco Mendonça
Terá sido Epiteto, filósofo grego, quem afirmou que é impossível para um homem aprender aquilo que pensa já saber. Talvez tenha passado tempo suficiente para ser forçado a concluir que Roger Schmidt não chegou ao Benfica para aprender, mas antes para colocar em prática aquilo que já sabia, ou, porventura, aquilo que julga saber. Digo isto do ponto de vista de quem, humildemente, tem tentado aprender mais sobre Roger Schmidt, das ideias de jogo à sua personalidade, passando pelas decisões que vai tomando ao longo de uma época desportiva. Digo-o, também, da perspetiva de quem tem tentado encontrar na passagem de Roger Schmidt pelo Benfica uma vontade ou uma capacidade de aprender.
Comecemos pelo início: ninguém quer verdadeiramente saber se Roger Schmidt fala português, alemão ou mandarim nas conferências de imprensa. Quem perde tempo a discutir a aprendizagem de Roger Schmidt em função da sua capacidade de falar um idioma que nem os locais muitas vezes tratam bem, fá-lo porque entende que há aí apenas mais um motivo para se irritar com o treinador, e não por radicar nisso um problema essencial da natureza de Roger Schmidt. Em suma, tenho para mim que os Benfiquistas não deviam dar para esse peditório.
Mas nem tudo é uma manobra de diversão. As coisas mais importantes que aconteceram ao Benfica nos últimos meses não se perderam na tradução, porque a linguagem universal do futebol assim o determina. Em matéria de jogo jogado, a diferença entre o Benfica da época passada e o desta época é como do dia mais luminoso para a noite mais tenebrosa. E o contexto não terá sido favorável à aprendizagem. O destino traiu Roger Schmidt, convencendo o alemão, por via de algumas epifanias na época passada, de que tudo o que Schmidt precisava de saber para subsistir no Benfica já havia sido adquirido.
Roger Schmidt foi-nos apresentado como tendo um futebol de autor que se tornara entusiasmante por esse mundo fora, ainda que pouco vitorioso, devido à alta intensidade, ao elevado número de golos e a um apetite voraz pela bola. Não foi amor à primeira vista. Foi um daqueles fins de semana de comédia romântica em que dois românticos — nós e Schmidt — se conhecem, casam e só não têm logo um filho porque leva 9 meses. Convencemo-nos de que o nosso encontro com Roger Schmidt fora a nossa maior sorte, uma combinação perfeita entre a ambição de um homem cheio de ideias e quase sem títulos, e um clube cheio de títulos, mas a quem faltava a fome de vencer muitos mais. Em bom português, juntou-se a fome à vontade de comer.
Há uma certa ironia em tudo isto e causa preocupação, senão a muitos Benfiquistas, pelo menos a um número crescente de adeptos. Já li algumas teorias sobre o assunto, da sorte que foi termos contratado Enzo Fernández ao pico de forma de muitos jogadores na primeira metade da época passada, passando por um planeamento desportivo mais afortunado, mas de uma coisa ninguém se esquece: os acontecimentos empolgantes dentro de campo eram uma espécie de Yin para o Yang representado pela serenidade de Roger Schmidt, no banco, a ver o seu plano ser operacionalizado como se nenhuma variável lhe tivesse escapado, como se tudo isto fosse produto de engenharia alemã. A ironia dá-se quando o futebol deixa de ser esse produto da engenharia e regride para se tornar uma espécie de protótipo pouco promissor. É nesse exato momento que a serenidade de Roger Schmidt se torna aflitiva.
Há uma campanha de publicidade de há alguns anos que utiliza de forma brilhante uma série de situações do quotidiano em que a dificuldade de comunicação entre casais é substituída por explicações que usam gíria futebolística para conseguir passar a mensagem. A verdade é simples e incontornável: «Se te explicam com futebol, tu entendes.» O problema não é que Roger Schmidt se recuse a aprender português. O problema é que ele deixou de nos dizer coisas novas na única linguagem que ambos compreendemos, a mesma linguagem que nos fez apaixonar por ele. Se ele nos explicasse com melhor futebol, nós entenderíamos. Se nos explica com mau futebol, nós também somos obrigados a registar.
Regresso a Epiteto, que também disse isto: o mais importante não é aquilo que nos acontece, mas a forma como reagimos a isso. Bem sei que a primeira época de Schmidt nos convenceu de uma espécie de controlo absoluto desde o primeiro segundo de cada jogo, e de facto assim pareceu durante algum tempo, mas nunca sem que os nossos opositores tentassem incomodar-nos. O sucesso esteve sempre no modo como reagimos ao plano de jogo de cada adversário e esmagámos essa esperança. Sei que há amargura nas minhas palavras quando me detenho por tanto tempo num futebol que agora parece uma memória longínqua, mas recuso-me a aceitar resignadamente que um treinador do Benfica reaja a uma exibição tão desinspirada como a deste fim de semana e diga, depois de tantos pontos perdidos na liga, depois de uma Liga dos Campeões embaraçosa, que é preciso aceitar que não podemos ganhar sempre. Até pode ser verdade, mas não podemos aceitar que joguemos quase sempre assim, tão pouco.
A 22 de agosto de 2022, Roger Schmidt explicava de forma bem disposta que ia tentar aprender a falar português, tal como o compatriota Julian Weigl, que na altura ainda representava o Benfica, mas acrescentou que era mais velho do que Weigl e não tem grande talento para aprender novas línguas. Curiosamente, nessa mesma conferência de imprensa, alguém perguntou a Schmidt, muito antes de este renovar, se tencionava ficar muitos anos no Benfica. A resposta de Schmidt, que chegou com um contrato de duas épocas, foi elucidativa: «Antes de mais espero ficar dois anos, significaria que jogámos bom futebol.»
Não precisamos que o treinador do Benfica aprenda um novo idioma para nos amaciar em salas de imprensa. Precisamos que ele fale o idioma que todos conhecemos e lhe junte o vocabulário necessário para nos resgatar deste futebol tão pouco eloquente que temos jogado. Se não for capaz de o fazer, corre o risco de acabar a falar sozinho.