«Eu tô cansado de derrota mas não vou-me entregar»

OPINIÃO05.12.201903:00

O título é roubado ao livro de Vítor Serpa, Golos de Letra, apresentado na passada segunda-feira na Sociedade de Geografia. Mais concretamente (já falarei do livro propriamente dito), da letra de uma canção de Martinho da Vila sobre a sua única alegria, que é ver o Vasco jogar. Mas o Vasco não ganha nada (nomeadamente o campeonato) desde o ano 2000. E depois disso só a Copa Brasil (2011), apesar de ter conquistado a Libertadores em 1998. Um currículo ligeiramente pior do que o do Sporting, que não ganha só desde 2002 o campeonato e ganhou a Taça ainda o ano passado, embora este ano a não vá ganhar de certeza.

Em 1974, ano em que o Vasco ganhou um dos quatro Brasileirões, o tal que não ganha desde 2000, Martinho cantou «minha alegria é ver o Vasco jogar». Ora eu penso que os sportinguistas estão cansados de derrotas, não vão entregar-se, mas não sentem essa alegria a ver o clube jogar. É que há qualquer coisa mal; qualquer coisa de profundamente mal e que se resume ao que disse o treinador do Gil Vicente quando ganhou 3-1 aos nossos: não temos jogadores ao nível de ganhar um campeonato. Temos para ganhar ao Gil Vicente, se a coisa não nos correr mal; temos, até, para ganhar ao PSV, como se viu. Mas temos quem? Bruno Fernandes, o indiscutível (e cuja novela do sai-não-sai já cansa); Acuña, o irascível de bom toque; Mathieu, cuja idade já vai avançada e Renan, que como guarda-redes não compromete. Os outros são maus? Longe disso! Mas são iguais a tantos outros, não se distinguem. Isso pode acontecer com dois, três ou quatro numa equipa com pretensões. O contrário, haver só dois, três ou quatro que se distinguem é que não é possível. Pode ser que Vietto se revele, pode ser…  Pode ser que Bolasie se esmere, também pode ser. E que Coates volte a ter velocidade. Mas, ainda assim, falta gente nas alas, falta um matador; falta quem cabeceie ou quem remate de longe, se não for o número 8, Bruno Fernandes. O resto é fantasia.

Ciclotímicos

Há um transtorno bastante desagradável, do foro psiquiátrico, chamado ciclotimia. Caracteriza-se, basicamente, por alterações súbitas de humor, que podem ir da depressão à hipomania, ou fase de bom humor e energia. Pois se o futebol do Sporting fosse uma pessoa, acho que qualquer psiquiatra poria a hipótese desta doença ser um dos seus males.

Se começa a perder um jogo, a equipa desconjunta-se. Parece que o mundo vai terminar (e, de certa forma, o jogo acaba para uma série de jogadores). No entanto, se as coisas correm bem, cada um deles se transcende e até Luiz Phellype parece um ponta de lança capaz de ombrear com as glórias do passado.

Hesitei e perguntei a responsáveis deste jornal se devia ou não aguardar pelo jogo de ontem da Taça da Liga antes de enviar o texto. Disseram-me que sim, que podiam esperar. Porém, depois de pensar melhor, disse que não esperaria. Justamente por causa do sentimento que acabo de descrever. Imaginem que o Sporting jogou bem e ganhou - coisa rara. O que muda (salvo ainda podermos ser, teoricamente, apurados para a final four) se no domingo ninguém vai ter a certeza de que o Sporting ganha ao Moreirense? Imaginem que o Sporting volta a perder. Que interessa? Tirando a enorme depressão que é perder duas vezes seguidas com o Gil Vicente, nada nos impede de, no domingo, ganharmos por quatro ou cinco ao Moreirense. Ao fim e ao cabo, quem acreditaria nos 4-0 ao PSV, mesmo depois de a equipa holandesa ter perdido 4-1 com essa potência desportiva que é o LASK Linz? Enfim, o segundo no campeonato da Áustria derrotou o terceiro do campeonato holandês que foi derrotado pelo quarto do campeonato português (atrás do Famalicão, não esqueçamos).

O problema do Sporting não é se ganhou ou perdeu ontem. É estrutural e tem muito a ver com o que se discute em Monsanto no julgamento que decorre do ataque à Academia de Alcochete. Não por acaso, todos os jornais, incluindo os desportivos, têm lá os seus repórteres e dão bastante informação sobre o que ali se passa.

E eu pergunto: haverá algum jogador do plantel - mesmo os que não estavam no Sporting à altura dos factos - que não seja afetado por tudo o que lá se diz? Haverá algum técnico a quem lhe seja indiferente? Algum dirigente? Algum sócio?

O julgamento

Àmedida que decorrem as sessões no tribunal, as coisas parecem clarificar-se. Temos testemunhas, que em princípio são insuspeitas, que não deixam dúvidas quanto aos factos: um grupo de energúmenos, com cumplicidades internas, entrou pelo centro de treinos e bateu nos jogadores. Esse é um facto!

Só por si, esse facto é relevante. Mas saber até que ponto a estrutura dirigente do Sporting à época, nomeadamente o seu então presidente, conhecia o tempo e os contornos do ataque é decisivo. Sobretudo para entender o grau de degradação ou desespero a que tinha chegado o líder da Direção do clube naquele mês fatídico de maio de 2018.

Tudo o que se seguiu a Alcochete foi mau. A reação de Bruno de Carvalho, a saída dos jogadores, a contratação de um treinador a escassos dias de uma tomada de decisão sobre a sua continuação; a obrigatória suspensão e demissão de um presidente, a falta de preparação da época. E, no entanto, a época em si foi muito razoável, para não dizer melhor do que o costume… mas as verdadeiras ondas de choque, como nos lutos, fazem-se sentir mais profundamente depois. Estamos agora a senti-las. E de que maneira.

Como fui presidente da Comissão de Fiscalização, que por unanimidade suspendeu Bruno de Carvalho e recomendou a sua expulsão, muitas vezes sou abordado por sócios que me perguntam: «E estes que só perdem? Não fazem nada?» Algumas destas perguntas são apenas provocatórias e não merecem resposta; mas outras não são. Vêm de sócios que não entendem que a suspensão e expulsão do antigo presidente nada teve a ver com resultados desportivos, mas com a flagrante e reiterada violação dos Estatutos e do Regulamento do Sporting. Estatutos e Regulamento que o próprio Bruno de Carvalho tinha feito aprovar e que seria bom alterar. Mas isso já serão contas de outro rosário.

Por isso, sim, estamos cansados. De tudo. Até fechar este ciclo; sem grandes esperanças de ainda em janeiro se poder inverter e salvar alguma coisa. A exceção ainda é, surpreendentemente, a Liga Europa, onde podemos ir mais longe, mas dificilmente a lugar de que nos lembremos no futuro.