Este gajo não quer jogar na 4.ª-feira?

OPINIÃO22.02.202205:30

Fábio Baptista, Fabinho para os adeptos do futebol de excelência, tinha acabado de fintar meio plantel do Farense para marcar o extraordinário terceiro golo da equipa B

A crónica desta semana começa às 19.11 horas de ontem, no exato momento em que o Rui perguntou num grupo de WhatsApp: «Este gajo não quer jogar na 4.ª-feira?»
O gajo a quem o Rui se referia chama-se Fábio Baptista, Fabinho para os adeptos do futebol de excelência, e tinha acabado de fintar meio plantel do Farense para marcar o extraordinário terceiro golo da equipa B frente ao adversário algarvio, um resultado que devolveu a equipa à primeira posição da Liga 2. A pergunta do Rui não foi inocente, dias depois de mais uma exibição embaraçosa. Naquele momento, ali no Seixal, tudo pareceu fazer sentido outra vez: uma equipa do Benfica a ganhar por 2-0 continuava à procura de mais um golo, mostrando a energia e o talento para tal, dando rigorosamente nada por adquirido, mesmo quando a exibição até ali parecia chegar e sobrar para confirmar o resultado e a liderança na prova.
É certo que a equipa B não faz tudo bem e, como explicava o seu antigo treinador Renato Paiva, está ali mais para aprender com os erros do que para ganhar todos os jogos. Sempre gostei dessa forma de ver as coisas, mas a verdade é que esta equipa B tem cometido menos erros do que a maioria dos seus adversários e vai apresentando, semana após semana, níveis de consistência, atitude e qualidade que poderiam, ao contrário do que geralmente acontece, ser um exemplo para a equipa A.
Não é caso para menos: a equipa B é a que mais golos marca e a terceira que menos golos sofre, mas não é só isso. Já providenciou talento para a equipa A, foi forçada a mudar de treinador a meio da época, e nem por isso perdeu gás. Alguma coisa ali acontece que não somos capazes de replicar na liga dos graúdos e, por muito que isso possa incomodar os jogadores feitos da equipa A, apetece perguntar onde estão os ingredientes que têm guiado a trajetória dos jovens aspirantes ao seus lugares: atitude vencedora, criatividade, vontade de disputar todos os lances, solidariedade, condição física, capacidade para combater a adversidade ou até a superioridade do adversário durante os jogos. Por isso pergunto: onde está a vontade de vencer da nossa equipa principal?
É espantoso e angustiante que esta questão possa ser colocada na véspera de enfrentarmos uma das mais interessantes equipas da Europa, a jogar em casa, na competição em que todas querem estar. Seria de esperar que o entusiasmo fosse transbordante e contagiante; que tudo tivesse sido feito para que a equipa, depois de uma fase de grupos muito meritória, se encontrasse agora no melhor momento da época, cada jogador em pulgas para enfrentar o Ajax. Só que não. Aqui chegados, a sensação é a de que este jogo surge na altura errada, de que é uma inconveniência no calendário desta equipa.
Se por esta altura o leitor estiver indignado com a minha falta de crença na equipa, tenha paciência. Tenho feito o que está ao meu alcance para apoiar a equipa, mas assim que ouço o apito final parece-me, invariavelmente, que o Benfica perdeu por falta de comparência. Não me refiro ao resultado final nem tão pouco à presença física de atletas vestidos de encarnado dentro do relvado. Falo de um Benfica que nem todos são capazes de ver, mas que todos os benfiquistas sentem quando está à sua frente. Arrisco dizer que muitos dirão o mesmo que eu: esse Benfica continua essencialmente desaparecido.
Podia achar-se que a apatia ou incapacidade eram um exclusivo da equipa, mas não. As opções de Veríssimo revelaram o que já se antecipava: a situação em que foi colocado, a liderar um grupo de trabalho com egos a mais e vontade a menos, exigia a capacidade de aplicar uma terapia de choque. Em vez disso os rapazes receberam um belo presente: um treinador macio que, não obstante o inegável benfiquismo e a boa vontade já demonstrada, se tornou outra vítima das circunstâncias. A juntar a isso tem tomado algumas decisões erradas na leitura do jogo que já nos custaram pontos. Se é verdade que o treinador não parece ter condições para este momento, os jogadores também não dão tudo o que se lhes pede.
À falta de prova em contrário, sou ainda levado a considerar que a liderança do clube se convenceu de que isto é o máximo a que devemos aspirar esta época, e que mais vale aguentar assim enquanto se planeia a próxima tentativa, isto depois de nos ter sido garantido que tudo nesta época estava devidamente delineado. Foram precisos alguns anos e muitas desilusões, mas a vida ensinou-me a não confiar num dirigente desportivo que diz ter tudo controlado.
No final, perdemos em toda a linha: pontos, títulos, identidade, e a vontade. Os nossos principais ativos desvalorizam, os treinadores parecem regredir, a liderança perde o capital conquistado, e os adeptos esmorecem. É aliás escusado continuar a criticar a comunicação numa altura como esta, porque o problema do Benfica não se resolve com uma nota de imprensa ou com uma boa notícia soprada aos jornais. Não há nada que os especialistas em comunicação nos possam dizer nesta fase que atenue o sofrimento que tem sido esta época desportiva. A única boa comunicação do clube nesta fase será a não verbal, se possível executada com os pés. Escusam de dar mais murros na mesa. Façam como manda a sabedoria popular: joguem à bola.
Regresso ao golaço do Fabinho frente ao Farense e relembro uma entrevista recente de um ex-jogador do Tottenham - Benoit Assou-Ekotto - em que este explica que para ele o futebol sempre foi um trabalho, uma forma de ganhar muito dinheiro, e que a maioria dos futebolistas pensa dessa forma mas não o admite. Fez-me pensar no Benfica. Eu não me importo de ser confrontado com pontos de vista que abalam o meu romantismo, mas, depois de rever o golo do Fabinho meia dúzia de vezes, gosto de pensar que aquilo não foi só mais um dia de trabalho. Que foi um sonho de criança em vias de ser concretizado. Que ali houve um pouco do Benfica que tantas vezes tem faltado esta época onde e quando é mais preciso. Mas, deixa-me dizer-te, Fabinho: se aquilo foi só trabalho, parabéns na mesma, porque encontraste uma forma estupenda de me enganar.
Por outro lado, se a ideia de um futebolista que encara os jogos de águia ao peito como apenas mais um trabalho não me agrada, posso dizer que me agrada ainda menos que esse jogador desempenhe o seu trabalho de forma pouco competente e nem sempre abnegada. Se os mais realistas querem tratar a mística e a paixão como mera questão contratual, vamos a isso. Explico porquê: em cada contrato de trabalho há um empregador, e cada empregador tem a sua história e os seus objetivos. No Benfica só há um objetivo e só deve haver uma forma de cá estar: dar tudo para ganhar todos os jogos. É por aqui que se mede o talento, onde mais importa: no coração do adepto. Não está escrito no contrato de trabalho, mas está escrito no contrato social. Podemos duvidar de tudo, menos da atitude dos jogadores. Se esse requisito ainda não é evidente para todos (não parece ser), é porque mais alguém no clube não está a fazer o seu trabalho.
Paciência. Amanhã não torço por uma vitória do meu romantismo. Respeitem o contrato ou honrem o emblema. Quero mesmo é que o Benfica ganhe, dê por onde der, sabendo no entanto que será preciso muito mais Benfica para derrubar este Ajax. Se isso vier a acontecer, posso garantir duas coisas: os jogadores irão para casa satisfeitos porque reconquistaram os adeptos (até ao jogo seguinte) ou porque garantiram o prémio de jogo e um salário ainda maior, seja lá qual for o empregador. Já os adeptos irão para casa felizes porque a sua ideia de Benfica terá estado ali, à vista de todos aqueles que a reconhecem, do primeiro ao último minuto. É esperar que os gajos queiram jogar na 4.ª-feira.