Dia de bravura cénica

Dia de bravura cénica

OPINIÃO11.04.202306:30

Não me desagrada a ideia de vermos uma equipa entrar em campo para fazer alguém pagar pelo acidente da semana passada

HÁ jogos que não valem apenas 3 pontos. Essa premissa era válida antes de o Benfica-FC Porto começar e permanece dolorosamente válida como corolário de uma derrota em que o Benfica foi manifestamente inferior. Pior do que jogar mal e perder os 3 pontos, é ter ficado com a sensação de que não se compreendeu que aquele jogo valia mais do que 3 pontos: pelo que significaria a vitória no contexto destes confrontos, pela confiança redobrada que traria à equipa, pela maior folga que daria ao plantel numa fase decisiva da época, e, finalmente, pela vantagem pontual. Pior do que jogar pessimamente e perder os 3 pontos, é a sensação de que pouco se fez para inverter essa situação ao longo do jogo, apesar de em poucos minutos termos percebido, no estádio, que o jogo não estava nas nossas mãos.

É simultaneamente estranho e demasiado familiar. Por um lado, apetece dizer que ninguém esperava ver um Benfica tão refém das circunstâncias que têm determinado muitos dos jogos contra este adversário, não depois da época que vimos até agora. Por outro lado, já testemunhámos aquilo que se passou vezes suficientes para saber que existe uma barreira psicológica difícil de transpor. Na sexta-feira essa barreira voltou a parecer novamente intransponível. Existe uma tendência para evitar certos confrontos com a realidade, nomeadamente no espaço público, mas parece-me que a única saída é começar por admitir aquilo que esteve à vista de todos, mais uma vez. Independentemente da qualidade teórica com que se têm apresentado, os jogadores do FC Porto chegam sempre a estes jogos na máxima força anímica. Não me recordo de ter visto uma equipa do FC Porto cabisbaixa ou apática na Luz. Recordo-me os ver disputar os 90 minutos como se a própria viabilidade da instituição que representam fosse determinada ali. Porque, em muitos sentidos, é. É dessa força, mais do que de qualquer outra, que se forma a identidade do principal adversário do Benfica em Portugal. Podemos todos condenar uma cultura de ódio emanada por alguns protagonistas da vida do FC Porto, mas não podemos negar que esse ódio é um combustível que garante mais intensidade do que a maioria. Não foi a derrota na sexta-feira que me deixou doente. Foi não termos chegado primeiro a uma bola, quando todo o nosso jogo passa precisamente pela capacidade de impor esse ritmo e essa vontade, que nunca é a dos outros, mas a nossa. O Benfica não pode ter medo. Seja de quem for, seja onde for.

Não me esqueço que há uma semana elogiei aqui uma frase de Roger Schmidt em entrevista ao jornal Der Spiegel, em que este explicava que prepara cada jogo com uma importante convicção: mais importante do que estudar o adversário, é sabermos ser inteligentes na forma de impor o nosso jogo. E explica ainda que a forma como se ganha conta muito. Concordo apaixonadamente com a tese, mas sei que nem sempre um plano sobrevive ao primeiro embate com o inimigo. Aí chegados, temos que nos adaptar. Se não conseguimos caçar com cão, temos que ver se há algum gato bem treinado à mão. É importante viver de acordo com as convicções, mas, durante os 90 minutos de um jogo de futebol, não convém morrer de forma pouco inteligente por excesso de lealdade às nossas convicções. Já vi muitas grandes equipas serem vergadas pelas circunstâncias e não serem menos vencedores por isso. Ter um plano B não é um defeito. É o simples reconhecimento de que há mais caminhos para chegar à felicidade e que nenhuma mesma fórmula de sucesso se aplica a todas as situações. Vi alguma capacidade adaptativa na visita da primeira volta ao Dragão, mas também sei que jogámos contra 10. Tenho mais dificuldade em dizer o mesmo acerca dos outros jogos do Benfica frente a FC Porto, Sporting e SC Braga.

No entanto, que ninguém tenha dúvidas: Roger Schmidt e estes jogadores já demonstraram capacidade de aprender com os erros. Não há motivo para que hoje não sejam melhores do que eram no início desta temporada, mesmo que a época vá longa e algum cansaço se faça sentir. Acho que falo pela esmagadora maioria dos adeptos: ficámos todos um bocadinho doentes com o jogo de sexta-feira feira, mas não confundamos as coisas. Este grupo tem tudo para continuar a crescer. Adiante que há muito ainda para conquistar.

Há muita coisa que se pode aprender com um só jogo, mas esse jogo não define esta época, nem por sombras. Foi esta equipa que se soube agigantar em Paris e em Turim. Foi esta equipa que soube ir à procura do sexto golo em Haifa quando todos os outros teriam descansado. Foi este treinador que se impôs de rompante e com ele trouxe uma capacidade de jogar como há décadas não víamos no clube. Se é verdade que esta equipa do Benfica joga fundamentalmente para apaixonar os benfiquistas, não me desagrada a ideia de vermos uma equipa entrar hoje em campo para fazer alguém pagar pelo acidente da semana passada. Os benfiquistas têm esse apetite e esta equipa tem sabido espelhar a sua vontade.

Por tudo isto, tão importante como reconhecer o medo cénico, devemos apelar mais uma vez à bravura cénica revelada pela equipa em ao longo da época, em especial quando teve de reagir. Hoje é dia de, juntos, regressarmos à entusiasmante normalidade que nos pode dar títulos.