Deus é argentino
A melhor final da história foi conquistada nos penáltis, pelo melhor futebolista da história frente à seleção do melhor futebolista moderno
O que há depois daquilo que vimos anteontem? A vida continua, mas ninguém sabe verdadeiramente. Passei um mês e meio a suspirar pelo regresso do futebol de clubes e deixei-me levar a pouco e pouco, como seria de esperar. Agora que acabou, suspiro por mais um prolongamento ou mais uma ronda de penáltis no tal país estranho e eticamente reprovável que construiu os melhores estádios do mundo para me persuadir a gostar dele. Falhou nesse intento, mas a paixão pelo jogo diz-me que a coisa valeu a pena, até porque os biliões não são meus.
Não é o amor que conquista tudo. É mesmo o futebol. Não precisam de concordar comigo. É factual. O acontecimento de domingo é já um dos eventos mais vistos, pesquisados e celebrados da história do desporto. Isso não acontece por acaso. A melhor final da história do futebol foi conquistada nos penáltis, após 6 golos em tempo regulamentar e no prolongamento, pelo melhor futebolista da história frente à seleção do melhor futebolista moderno. Se há uns anos uma equipa de guionistas se reunisse para escrever o princípio, início e fim da carreira de um anão argentino nascido em Rosário e criado em Camp Nou, jamais entregariam a última taça, e a maior de todas, ao protagonista Lionel Messi não sem antes o coroar múltiplas vezes e o torturar outras tantas. Foi exatamente assim que a coisa se deu, como se tivesse sido escrita, ou não insistissem os argentinos em explicar ao mundo inteiro a sua vocação para sofrer, enquanto se agarravam ao rol de coincidências que atravessaram o tempo entre 1986 e 2022, cada uma prenunciando o mesmo desfecho. Se não estava escrito, foi mesmo isso que pareceu. Uma história de amor, perdão, futebol, que parece ter sido fabricada, de tão perfeito que foi o seu final.
Há muitos grandes jogadores no futebol mundial, mas sinto sempre que há uma espécie em vias de extinção a desaparecer depressa à nossa frente. Talvez seja verdade, talvez seja uma ficção construída pelos meus olhos, mas tenho para mim, à medida que os anos passam, que já não se fazem jogadores exatamente como os que me fizeram gostar muito de futebol e não ver neste apenas um jogo, mas antes uma celebração estética. Os anos passaram, apaixonei-me pelo toque de bola de duas dúzias de jogadores, e passei a achar ignorante quem tenta rebaixar o futebol enquanto manifestação cultural. Mas, enquanto escrevo isto, há de facto futebolistas que parecem ainda trazer aquela combinação de toque de bola e cerebralidade vinda de outro tempo, talvez simplesmente pela estética do seu toque na bola, talvez porque são de facto diferentes. Quis o destino que um desses casos raríssimos fosse argentino e tivesse contrato com o Benfica. Não exagero se disser que é uma bênção. Ver Enzo Fernández receber o prémio de melhor jovem futebolista do Mundial seria sempre um motivo de orgulho e celebração, mas é mais bonito quando vemos no jogador, não apenas um atleta moderno, mas alguém que nos lembra exatamente porque é que nos apaixonámos pelo futebol. E saber que daqui a poucos dias voltará a jogar de encarnado torna tudo ainda melhor e mais especial. Sei que não será por muito tempo, mas vamos aproveitar cada toque na bola e, se possível, vencer todos os jogos até ao final.
Por um lado sinto-me obrigado a concordar com o outro benfiquista Otamendi quando este diz nas redes sociais, inundado pela comoção argentina, que «depois disto não há mais nada». Por outro lado, sinto-me na obrigação de o informar que, vá lá, pode folgar no jogo de Braga, mas terá de calçar o mais tardar frente ao Varzim para a Taça de Portugal. Não fui eu que fiz as regras, Nico. Mas compreendo-te. Se não é fácil sequer para um adepto de futebol não argentino digerir aquilo que viu anteontem, imaginem para quem pisou a relva a representar brilhantemente o seu país.
Não há muitas coisas mais bonitas do que uma seleção argentina capitaneada por Messi sagrar-se campeã mundial. E, tal como mandam as histórias perfeitamente escritas, há sempre alguém cabisbaixo e derrotado no final. Até nisso parece escrito. Curiosamente não vi em Mbappé esse perdedor. Vi no francês um mais do que provável vencedor por muitos e bons anos. Mas passaram já mais de 24 horas desde a fantástica e respeitável conquista de um eterno rival, contra quem jogou xadrez este anos todos, ou pelo menos aquelas duas horas pagas por uma marca de malas, e não há forma de Cristiano Ronaldo parabenizar o seu maior adversário, e o único que o relegou para a segunda posição ao longo da carreira. Mais uma vez, como tem feito ao longo dos últimos tempos, um dos melhores atletas de sempre continua a digerir com dificuldade o seu declínio. Enquanto Messi passou quatro semanas a dançar no relvado a um ritmo adequado ao seu último grande momento da carreira, Cristiano Ronaldo passou o tempo todo a correr atrás da sua sombra em jovem. O resultado, como se tem visto fora do relvado, mostra o desnorte de quem ainda não está capaz de aceitar o crepúsculo da carreira, a par de uma preocupante falta de aconselhamento. Cristiano Ronaldo poderia ter saído deste Mundial com um capital absolutamente intocável, marcasse muitos golos ou nenhum. Escolheu outro caminho.
Ao longo do Mundial houve vários termos que ocuparam o espaço mental dos adeptos portugueses, mas o maior talvez tenha sido a dívida de gratidão. É um conceito frequentemente utilizado em Portugal para, entre outras finalidades, tornar admissíveis os comportamentos abusivos de alguém. E isto é assim porque as dívidas de gratidão a tipos humildes são geralmente constatações mais raras, porque o tipo humilde as dispensa, não trabalha para isso. Já o tipo cheio de si, diz-nos a história, mesmo que tenha motivos para tal, tende muitas vezes a pegar na dívida de gratidão e vai lentamente desbaratando esse capital. A história é conhecida: acabamos todos credores do tipo a quem devíamos gratidão. É muito raro este tipo de endividado pedir desculpa, admitir erros ou confessar a sua falta de humildade, mas felizmente o futebol ainda se vai encarregando de providenciar justiça poética, muitas vezes cruel, o que terá feito de domingo um dos dias mais dolorosos da carreira do maior futebolista português. Conhecendo, como todos os portugueses, a ética de trabalho e o talento de Cristiano Ronaldo, aguardo ansiosamente por ver que novas páginas ele irá escrever para rivalizar com o que aconteceu anteontem. Se alguém é capaz, mesmo aos 37 anos, ainda é ele.
Mas domingo fez-se história como em nenhum outro dia. Anteontem ficará para sempre como o dia em que o futebol confirmou - mais uma vez - que Deus é argentino.